Folha Online sinapse  
27/08/2002 - 02h49

Vocacional: por que os bons tempos não voltam?

LUIZ PAULO LABRIOLA
especial para a Folha

A excelente matéria publicada no primeiro número de Folha Sinapse sobre a experiência dos ginásios vocacionais da década de 60 pode induzir o leitor a um clima de romantismo e nostalgia que, invariavelmente, envolve a lembrança de fatos daquela época, e no fim das contas obscurecer a compreensão de certas transformações históricas. Ao terminar de ler a matéria, o leigo provavelmente ficará inclinado a perguntar: "Por que não podemos fazer isso tudo outra vez?".

Algumas pontuações sobre a história mais recente da escolarização privada e pública no Brasil talvez ajudem a desfazer uma certa mistificação que pode acompanhar o relato das experiências nos ginásios vocacionais.

A primeira se refere ao perigo de enfatizar excessivamente a contribuição do regime militar para a interrupção daquela experiência. Tal como ocorreu com o desaparecimento do ensino de filosofia no antigo colegial, aproximadamente na mesma época, os ginásios vocacionais não terminaram por força de lei e nem do dia para a noite. Vivia-se, de fato, um contexto de guerra psicológica e de caça indiscriminada ao pensamento de esquerda que inegavelmente criava enormes obstáculos para o desenvolvimento daquela e de muitas outras experiências vanguardistas ligadas ou não ao mundo educacional. Porém, o problema de ver os ginásios vocacionais apenas como "mais uma vítima do regime militar" está em omitir outro fator decisivo para aquela ruptura, o qual ainda hoje atua decisivamente para tornar as escolas (inclusive as particulares) espaços onde, parodiando Rubem Alves, o saber não tem sabor e a relação com o conhecimento se burocratizou, infernizando a vida de crianças e adolescentes.

Trata-se de uma outra tirania, aquela exercida pelos exames vestibulares sobre os projetos pedagógicos (quando estes existem) das escolas em geral. E da incapacidade dos gestores educacionais de oferecer respostas consistentes a essa pressão. O final da década de 60 foi precisamente o momento em que se expandiu vertiginosamente a demanda por vagas no ensino superior brasileiro e, por consequência, iniciou-se a proliferação daqueles prósperos empreendimentos mercantis denominados "cursos pré-vestibulares".

Também no universo da educação escolar, algumas "decisões" resultam da união entre "a fome e a vontade de comer", como diz o jargão popular. O regime militar era a "fome". E a ditadura "pedagógica" dos cursinhos era a "vontade de comer", impondo-se num momento em que pelo menos três "alimentos" a faziam salivar: 1) a falência do ensino público primário e secundário no Brasil, que ao final da década de 60 já era um fato consumado e politicamente com poucas chances de ser revertido; 2) o empobrecimento irrefreável das classes médias, para o qual a ideologia do "milagre econômico" pretendeu dar uma resposta, e o emergente mito desenvolvimentista em sua vertente educacional: quanto mais vagas nas escolas e quanto mais facilitado o acesso ao ensino superior, mais desenvolvimento econômico, maior mobilidade social e melhor distribuição de renda; 3) os persistentes efeitos do mito do bacharelismo —um dos que parece ter vida mais longa no universo educacional brasileiro— mas, sobretudo, da crença nos poderes mágicos de siglas como USP, FGV e ITA.

Face à força dessas circunstâncias, provavelmente o policiamento cultural e intelectual da censura e de seus prepostos fosse até mesmo desnecessário. O rumo "natural" dos acontecimentos se encarregaria de desferir o golpe de morte nos vocacionais.

Nos últimos 30 anos, a grande parte das escolas particulares —única alternativa para as famílias que buscavam ensino de qualidade e poderiam custeá-lo— assimilou o "know-how pedagógico" dos cursinhos pré-vestibulares, na tentativa de atender à demanda resultante dos três fatores citados acima. E algumas o fizeram desesperadamente, principalmente quando as empresas mantenedoras de alguns cursinhos expandiram suas atividades para a pré-escola, 1º e 2º graus (atualmente educação infantil, ensinos fundamental e médio). A aposta era clara: manter a grife histórica de escola particular (até então sinônimo automático de qualidade) e incorporar as estratégias pedagógicas dos cursinhos.

Uma segunda pontuação importante diz respeito ao termo "vocacional". É verdade, como diz a matéria, que "muito leigo (sic) tende a achar que "vocacional' tem a ver com "vocação', no sentido mais estrito do termo, que remete para a idéia prática de encaminhamento do aluno para uma opção profissional". Mas a reportagem se equivoca ao concluir daí que "nada poderia ser mais distante do sentido dessa pedagogia" (do que fazer essa interpretação do termo "vocacional"). Alguns dos princípios pedagógicos do ensino vocacional no Brasil ("aprender a aprender", "conhecer a partir do meio em que se vive", "somente pode ensinar quem continua aprendendo") derivaram diretamente do universo de referências da Escola Nova e do pensamento de John Dewey, que viam "na ponta da linha" (não apenas, mas também) uma escolha profissional bem sucedida, o que somente poderia ocorrer quanto mais experimental e menos acadêmica fosse a aprendizagem durante a escolarização básica. Qualquer tentativa de "reviver" o modelo do ensino vocacional brasileiro da década de 60 inevitavelmente terá de passar também por essa "idéia prática" de vocação.

Uma terceira e última pontuação se refere ao problema do custeio de uma escola vocacional. Tratava-se, de fato, de uma escola cara, pois demandava atividades fora da escola, materiais diversificados e laboratórios, bem como formação contínua do professor. Ora, a louvável idéia de que "pais que podem mais cubram a diferença dos que podem menos" —proposta por educadora que está implementando experiência semelhante em Paulínia (SP)— lamentavelmente afrontaria hoje dois sentimentos bastante fortes (embora nem sempre expressos claramente) em famílias de classes médias no Brasil que buscam escolas particulares para seus filhos: 1) "já pagamos demais, não podemos arcar com custos adicionais"; 2) "buscamos um local seguro onde nosso filho possa estudar; a mistura de classes sociais é ameaçadora".

A reabilitação do projeto pedagógico vocacional teria de passar, portanto, por uma cuidadosa persuasão do "cliente" quanto aos benefícios dessa filosofia educacional. Em épocas de espesso pragmatismo e drástica contenção de gastos, talvez não seja possível nem mesmo "pagar pra ver".

Luiz Paulo Labriola, 44, é educador, pesquisador em filosofia da educação pela USP e especialista em ensino médio. Está relendo "Entre o Passado e o Futuro", de Hannah Arendt, e não perde as tardes de sol com a bicicleta e seu filho na Praça 7, em Ribeirão Preto (SP), onde mora.
E-mail - lplabriola@uol.com.br

     

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