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16/12/2003 - 03h06

Em busca das raízes

LIANE FACCIO
free-lance para a Folha de S.Paulo

Para 1,4 milhão de moradores de Porto Alegre, o arroio Feijó é só mais um dos fios d'água que atravessam a capital gaúcha rumo ao rio Guaíba. Para muitos dos cerca de 200 mil moradores das cidades de Alvorada e Viamão que vivem perto de algum trecho de seus 15 quilômetros de extensão, ele é apenas um depósito de lixo. Mas para Renato Franzen, 62, o arroio é quase um membro da família: leva o sobrenome de seu tretravô materno, Manoel de Souza Feijó.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Reinhold Kraft, que tem na parede de sua casa a árvore genealógica da família

O administrador de empresas não sabia que nas suas veias corria sangue dos Feijó, antigos donos das terras que hoje formam a capital gaúcha e os arredores, incluindo o arroio. Desvendou essa página de sua história construindo a árvore genealógica da família, um hobby que o levou à vice-presidência do Ingers (Instituto Genealógico do Rio Grande do Sul).

Para dimensionar o que sentiu ao reconhecer um curso d'água como parte de sua história, Franzen explica que a honra de um genealogista é feita de conquistas modestas. "Nosso maior orgulho é descobrir um documento." Por trás de um pedaço de papel com datas, locais e sobrenomes geralmente estranhos, há um componente subjetivo que costuma transformar administradores, físicos ou engenheiros em genealogistas.

A microempresária Marta Maria Amato, 57, gostou tanto do trabalho que fechou seu negócio para se tornar genealogista. É dela a revisão, disponível em CD-ROM e concluída em 2002, da "Genealogia Paulistana", obra em nove volumes de Luiz Gonzaga da Silva Leme, editada entre 1903 e 1905, que investiga origens e destinos dos clãs que formaram São Paulo, desde quando a cidade era a segunda da capitania de São Vicente, lá pelos idos de 1500.

Dito assim, tudo parece longínquo demais para ser interessante, mas é com empolgação juvenil que Marta conta que descobriu que a primeira-dama paulista, Maria Lúcia Alckmin, tem parentesco com a ex-primeira-dama brasileira Ruth Cardoso e, via outro ramo de antepassados, com a mulher do atual vice-governador de São Paulo, Leneia Lembo. "Para mim, 'eles' têm vida, não são só nomes", sublinha Marta. "A genealogia começa como uma brincadeira, mas é um vírus, até hoje sem vacina."

A maioria dos aficionados por esse tipo de levantamento deve ter tempo para vasculhar arquivos em igrejas, cartórios ou internet, além de, como motivação, ter curiosidade de saber de onde vem. Boa parcela quer perpetuar a história da família ou obter um passaporte estrangeiro, e alguns poucos pleiteiam uma herança.

Independentemente do grupo a que pertençam, todos precisam ter, segundo Marta, perseverança, perspicácia e paciência. Os "três pês" do manual que ela planeja editar começam a ser usados quando os relatos dos parentes mais velhos não dão conta de listar todos os nomes ou datas de nascimento, casamento e morte necessários, ou ainda seus locais de origem. O passo seguinte é esquadrinhar o passado na relação de eleitores nos arquivos nacional e dos Estados, em testamentos ou escrituras de terras esquecidos nos fóruns e, principalmente, em registros paroquiais.

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida como igreja dos mórmons, acumula o maior banco de dados mundial para a genealogia. Segundo a própria igreja, o desenvolvimento humano é tanto maior quanto for o vínculo de uma pessoa com sua família, por isso eles incentivam os próprios "fiéis" a fazerem suas árvores genealógicas.

Nas 937 capelas deles no Brasil, há informações sobre os Centros de História da Família e seus microfilmes disponíveis para consulta —por R$ 3 para um período de dois meses. Segundo o setor de relações públicas da igreja em São Paulo, há no país 266 centros, operados por 900 voluntários que dão acesso a 40 mil rolos de filmes.

Edison Vara/Folha Imagem
O administrador de empresas Renato Franzen, que descobriu um tetravô de sobrenome Feijó
Cada rolo reproduz 7.000 páginas de registros de nascimento, casamento ou morte do período compreendido de 1680 a 1900. Se a pesquisa precisa retroceder mais, pede-se uma cópia do microfilme para a sede da sociedade genealógica dos mórmons, localizada na cidade de Salt Lake, em Utah, nos Estados Unidos.

Lá, no interior de uma das montanhas de granito que circundam Salt Lake, repousa boa parte da memória de cidadãos de várias partes do mundo, microfilmada em 3 milhões de rolos a partir de informações obtidas em igrejas católicas e arquivos civis de 110 países, totalizando 18 bilhões de registros —um volume suficiente, em metros, para dar duas voltas e meia na Terra, segundo cálculos da própria igreja.

Paciência conta ponto desde aqui. A espera por um microfilme, segundo os mórmons, demora em média 40 dias. Uma vez no país, as informações ficam disponíveis para pesquisa por dois meses. Nesse período, é preciso conciliar a agenda pessoal com a do operador dos centros, um voluntário que dedica parte de seu tempo livre à igreja.

Ajustados os ponteiros, é recomendável aprender a ler os manuscritos —alguns podem até estar escritos em latim, e o maior desafio é desvendar a caligrafia. Mesmo quando o microfilme está em português, sua interpretação requer olhos hábeis a reconhecer letras parcialmente apagadas e decodificar abreviaturas. Segundo Marta, esse é o momento de usar perspicácia. "Há cem anos, escrevia-se Martins como 'Miz'", exemplifica.

A perseverança é a ferramenta seguinte. Alguns dos microfilmes possuem apenas dados de um determinado período da cidade investigada, e pode ser que a informação desejada não esteja em nenhum deles. Sem contar nas vezes em que o "batizado" herdou o sobrenome de padrinhos ou madrinhas, como era comum nas ilhas dos Açores, por exemplo.

"A burocracia é chata, mas também tem um lado afetivo. Conta a história da vida das pessoas pelos papéis", explica a cineasta Sandra Kogut, 38, cuja busca pelas origens a trouxe de volta ao Brasil. Sua experiência com as duas faces do estudo de linhagem, "a papelada e as histórias", deu o mote ao documentário "Um Passaporte Húngaro".

Pelo fascínio do mistério ou por pura teimosia, quem assume o desafio da investigação encontra sempre uma recompensa. "A gente fica conhecendo as pessoas que estão ali, se familiariza, passa a viver aquele momento", testemunha Edina Maria Ricardi de Almeida, 56, que há 11 anos virou voluntária do Centro de História da Família do bairro do Morumbi, em São Paulo, por gostar de genealogia.

Editoria de Arte/Folha Imagem
COMO CONSTRUIR UMA ÁRVORE GENEALÓGICA

Ela mesma chegou à oitava geração de sua família, descobriu hábitos e rotinas de parentes seus que viveram em 1740 e acompanhou gente que vasculhou os microfilmes por até quatro anos, alcançando 14 gerações. Em Utah, o mais ancião dos documentos é um registro suíço de 877, mas a maioria dos dados percorre do séculos 16 ao 20.

Um mergulho nesse universo insondável de uniões de antepassados pode ser motivo de vaidade, mas já foi razão para mentira. No livro "O Nome e o Sangue", em segunda edição pela TopBooks, o historiador Evaldo Cabral de Mello revela uma fraude genealógica que pretendia esconder as origens judaicas de uma família pernambucana disposta a apagar o passado para garantir uma vaga em postos de poder do Brasil Colônia.

A episódios como esse credita-se parte da má fama da genealogia entre os acadêmicos, mesmo para os da história. A genealogia não é reconhecida como ciência, e seus limites podem ser encontrados entre a demografia histórica e a história da família.

"Muitas genealogias nascem de um preconceito de classe ou da tentativa de exercer uma auto-afirmação social", explica Francisco Antonio Doria, 57, professor em comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Também é uma área dominada por trabalhos amadores, e acadêmico não gosta disso."

Ao escrever "Os Herdeiros do Poder" (editora Revan), Doria examinou a linhagem de alguns dos atuais dirigentes e constatou que eles descendem, em geral, dos primeiros proprietários de terra a povoar o Brasil. "A hereditariedade do poder também ocorre porque há uma certa cultura do poder. A elite já nasce arrogante", teoriza.

O caso de Reinhold Kraft, 70, pode confirmar a tese do professor. Na sala de seu apartamento, no bairro do Morumbi, em São Paulo, uma árvore genealógica de sua idade ocupa orgulhosamente a parede. São nove gerações do clã dos Kraft, formado por camponeses e banqueiros que dominaram a produção e a distribuição de cereais na Iugoslávia do início do século 20.

Com a guerra, toda a família fugiu da Europa, basicamente com a roupa do corpo —e a árvore genealógica, entre os poucos pertences, à mão. Às vésperas de completar 60 anos da fuga, Kraft exibe o destino dos parentes no Brasil: "Fomos uma das 500 famílias que colonizaram o Paraná".

A relação entre terra e poder também foi analisada pelo historiador Carlos de Almeida Prado Bacellar, 44, estudioso do surgimento de uma elite agrícola em São Paulo no século 18, trabalho que culminou no livro "Os Senhores da Terra", editado pelo CMU-Unicamp (Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas). "Genealogia é pouco usada com fins acadêmicos, mas é uma fonte preciosa de informação."

Uma fonte, salienta Bacellar, afinal as obras encomendadas por famílias nem sempre contam toda a verdade. Muito usado pela elite agrária para mostrar ascendência social, o recurso perde importância com o avanço do capitalismo. "Se o pai é um barão e não tem dinheiro, a ascendência não vale nada", observa Bacellar.

O que passa a contar, desde então, é o prazer de tirar as raízes do esquecimento e, quem sabe, identificar nelas a que mais contribuiu para cada um ser o que é. Doria, batizado Antonio para perpetuar o primeiro Antonio da família que veio de Portugal 11 gerações antes, ainda dá outra finalidade às suas indagações a respeito do pedigree de seu sobrenome. "Faço genealogia para me livrar dos fantasmas da família."

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