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16/12/2003 - 03h38

Os papéis do Vaticano

LOLA GALÁN
SÉRGIO MORA

da "El País Semanal"

Quando o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) consultou o Arquivo Secreto do Vaticano, graças a uma autorização especial obtida do papa Clemente 11, o arquivo era considerado o mais completo do mundo. "Há uma carta belíssima do filósofo agradecendo ao papa, na qual ele diz que era o melhor arquivo da Europa, o que equivalia a dizer o melhor do mundo", comenta com orgulho o cardeal Jorge María Mejía, há cinco anos responsável pela biblioteca e pelo Arquivo Secreto do Vaticano.

Enrica Scalfari/Folha Imagem
Sala de leitura da biblioteca do Vaticano

Nascido em Buenos Aires há 80 anos, Mejía reina sobre esse território extraordinário de manuscritos, mapas, dossiês, pergaminhos, códices e cartas, todos perfeitamente dispostos em estantes que ocupam uma extensão de 90 quilômetros.

Nesse imenso inventário histórico de uma das instituições mais longevas da história, a Igreja Católica, encontra-se de tudo. O cardeal menciona algumas das raridades que compõem o arquivo. "Há uma carta do papa Clemente 14 [1769-1774] a Mozart", revela. "Mozart era um menino prodígio e, quando visitou a Itália, o papa o agraciou com a Ordem da Espora de Ouro."

Em alguma parte do intrincado labirinto do arquivo, que ocupa as salas nobres junto às dependências da biblioteca, são guardadas as cartas trocadas entre o papa Alexandre 6º (1431-1503) e sua suposta filha, Lucrécia Bórgia, escritas em italiano, e cartas redigidas em francês pelo monarca britânico Henrique 8º para sua segunda esposa, Ana Bolena —a desautorização do divórcio para seu primeiro casamento foi o estopim para a separação entre a Igreja Anglicana, fundada no século 3º, e a católica.

É um material tremendo, testemunho de boa parte da atividade da Santa Sé desde o papa Inocêncio 3º (1161-1216), eleito em 1198, até nossos dias. "Naturalmente, faltam algumas coisas", diz o cardeal, "porque nem tudo veio de Avignon [cidade francesa que foi sede da igreja no século 14, por quase 80 anos]." Da etapa anterior a Avignon —ou seja, desde que a Igreja Católica conquistou a liberdade e o reconhecimento do imperador Constantino, no século 4º— restam apenas algumas jóias, que o cardeal Mejía cita com enorme prazer.

"Há, por exemplo, um decreto de um dos grandes mongóis turcos, manuscrito em letras de ouro sobre pergaminho púrpura."

Embora o arquivo secreto exale um ambiente de mistério, algo que se deve em parte a sua localização labiríntica na cidade-estado do Vaticano, o "segredo" no nome é apenas um resquício linguístico do passado. "'Secreto' vem do latim 'segregare', colocar à parte, porque antes o velho arquivo ficava junto à biblioteca, e decidiu-se deixar uma parte para consultas do papa", explica Mejía.

Foi o papa Paulo 5º (Camillo Borghese, 1552-1621), bibliotecário e grande aficionado pela ordem, que, em 1610, decidiu separar a enorme massa de papéis e livros acumulados no Vaticano. A separação foi executada durante o pontificado de Urbano 8º (1568-1644).

"O objetivo era distinguir o que era cultura, os livros de valor, os pergaminhos, do que era da égide do governo —ou seja, os arquivos correspondentes à direção de um país", nesse caso o Estado da Cidade do Vaticano, explica Mejía.

De um lado ficou a biblioteca, com seus códices, manuscritos, obras de literatura piedosa, mapas e arquivos; de outro, "sem que a divisão seja clara e nítida", reconhece o cardeal, o arquivo, com documentos internos da Santa Sé, que incluem até os antigos processos da Inquisição, como aquele que condenou Galileu Galilei.

Entre os documentos ilustres que fazem parte do arquivo, restam poucos que ainda hoje mereçam ser descritos como secretos. De fato, muitos dos estudiosos que atravessam a porta dessa instituição (são cerca de 1.500 visitantes por ano) buscam dados tão banais quanto informações genealógicas ou detalhes sobre a atividade de alguns pontificados.

Ainda assim, existe uma parte do arquivo que desperta paixões: é a que cobre o pontificado de Pio 12 (Eugenio Pacelli, 1876-1958), papa desde 1939, que conduziu a igreja durante os anos turbulentos da Segunda Guerra Mundial. É um material que só poderá ser visto em 2009.

Jerome Delay - 21.fev.2001/AP
O cardeal Mejía (à dir.) cumprimenta o papa
João Paulo 2º (Karol Wojtyla) tem sido o mais generoso de todos os papas no que diz respeito a abrir o acesso ao arquivo, desde que, em 1881, Leão 13 (1810-1903) decidiu franqueá-lo a estudiosos dotados de credenciais. "Em fevereiro deste ano, o papa autorizou a abertura dos arquivos até o pontificado de Pio 11, mas por etapas. Não é questão apenas de abrir armários. É preciso verificar o estado das pastas, consultar e criar índices e carimbar cada uma das páginas", diz o cardeal Mejía.

O cardeal bibliotecário tem consciência da polêmica que cerca Pio 12. "Eu estava aqui, o conheci, vi a praça de São Pedro repleta de pessoas vindas para agradecê-lo pelo que fez pelos judeus", diz Mejía, que durante anos foi secretário da Congregação para os Bispos.

Isso sem mencionar o fato de que esse ansiado material do Vaticano não está completo. "Uma parte do arquivo da nunciatura de Berlim foi queimada durante os bombardeios de novembro de 1943, e com certeza haverá quem diga que fomos nós quem escondemos o material." Os historiadores precisam se armar de paciência. O pontificado de Pio 12 durou 19 anos e produziu uma quantidade enorme de material. "Temos apenas 80 pessoas trabalhando na biblioteca e 52 no arquivo. É muito pouco."

A escassez de pessoal e a profusão de tarefas cortaram as asas do projeto de digitalizar o arquivo secreto. "Quando se tem 90 quilômetros de estantes, o trabalho é enorme. Já foram passados para CD todos os documentos de um dos três registros, o do Vaticano. São 500 discos que abrangem de Inocêncio 3º [papa desde 1198] a Alexandre 6º [até 1503]. Por registro, entende-se uma coleção de documentos cujo nome deriva de seu local de proveniência. O registro do Vaticano já estava aqui; o de Letrão, em São João de Letrão [em Roma, residência dos papas desde a época do imperador Constantino, no século 3º, até a construção da basílica de São Pedro, no século 16], e o de Avignon veio em várias etapas."

O arquivo sempre foi estreitamente vigiado e controlado. "Nunca houve um incêndio aqui. No tempo de Leão 13, não se aceitava a calefação, porque ela era feita com lenha e temia-se que pudesse provocar incêndios. Fazia tanto frio que há diários de pessoas que vinham estudar aqui que contavam que seus dedos congelavam."

Mejía é responsável tanto pelo arquivo secreto como pela biblioteca. Ele reconhece que a divisão entre os dois territórios é bastante aleatória. As cartas de Alexandre 6º estão no arquivo secreto. Na biblioteca, porém, há cartas de santa Teresa de Jesus (1515-1582) e dois poemas de Edith Stein (santa Teresa Benedita da Cruz, 1891-1942) que deveriam estar no arquivo.

No arquivo, há alguns documentos especialmente preciosos, segundo Mejía. Entre eles, o "Codex Vaticanus", uma cópia inteira da Bíblia grega, em quatro tomos. "Data do ano 330, e é possível que seja uma das cópias encomendadas pelo imperador Constantino", explica Mejía.

"Quando o imperador foi a Constantinopla, pediu que lhe fizessem 50 cópias da Bíblia; uma delas está aqui desde o século 15. Ela certamente chegou com algum prelado estrangeiro vindo para participar do Concílio de Ferrara, convocado por Eugenio 4º [1383-1447, papa desde 1431]."

Mas nem todos os tesouros do passado contidos no arquivo secreto são autênticos. Não se deve esquecer que, na Idade Média, os copistas acrescentavam aos textos antigos comentários de sua própria escolha. "Mas os falsos dessa época também são muito interessantes", diz o cardeal. "E não me consta que existam falsos recentes."

     

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