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27/01/2004 - 03h26

Leituras Cruzadas: Carta ao leitor

OSCAR PILAGALLO
especial para a Folha de S.Paulo

Puxe a cadeira, prezado leitor, para dois dedos de prosa. Olhe quem está na roda: Drummond, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Chico Buarque, Fernando Sabino, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, João Cabral e Clarice Lispector. Estão aqui reunidos porque, além do gênio, têm outra coisa em comum: escreveram cartas publicadas em livro ao longo dos últimos meses. Li a pilha toda, a pedido do Sinapse, e achei que não era o caso de escrever resenhas, até porque alguns deles já haviam sido avaliados na imprensa. Neste caso, o formato carta me pareceu mais apropriado. Não só aproveito o embalo da leitura epistolar como fico dispensado da formalidade do texto jornalístico e de apresentar as obras como um todo. O que nos dá mais tempo de ir direto ao que interessa: os bastidores da escrita, por assim dizer.

Clarice Lispector, Mário de Andrade, Drummond, Fernando Sabino, Guimarães Rosa e Vinícius de Moraes
O apelo irresistível das cartas é que os autores, certos de que serão lidos apenas pelo amigo destinatário, não policiam o texto, deixando correr a pena de um jeito "desenfeitado", para usar a expressão de Edoardo Bizzarri, tradutor de Guimarães Rosa para o italiano. Mas sejamos honestos, leitor hipócrita, meu semelhante: quem abre um livro de correspondência arromba uma gaveta atrás do publicamente inconfessável. E, já que assim é, o "voyeur" que vive em nós não ficará totalmente decepcionado com as leituras: há indiscrição para ninguém botar defeito. Mas passo. Em relação a esse capítulo, sugiro ir direto aos originais, pois a nossa perversidade quer o detalhe, não o resumo, certo?

O que surpreende, de saída, é o volume de cartas: encheram dez livros (dos quais quatro não comento, por estarem fora do meu foco literário, mas deixo o registro, caso você seja aficionado do gênero: os de Tarsila do Amaral, Alceu Amoroso Lima, Nise da Silveira e o da correspondência de Machado de Assis e Joaquim Nabuco, cujo valor é mais documental, por tratarem extensivamente da fundação da Academia Brasileira de Letras). Dez livros não é pouca coisa. Principalmente quando se leva em conta que o brasileiro nunca cultivou muito essa tradição. Somos preguiçosos, uns macunaímas sem caráter a adiar o e-mail ao amigo que mora no estrangeiro. Bem, se serve de consolo, escritores não são diferentes. "Brasileiro é gente muito veada para escrever", observou Manuel Bandeira a Vinicius, reclamando de amigos que o deixavam sem resposta.

Se toda a regra tem exceção, esta tem nome e sobrenome: Mário de Andrade. Poeta, pesquisador, folclorista, funcionário público, ele achava tempo para escrever a velhos amigos e jovens admiradores. "Sofro de gigantismo epistolar", constatava, sem nenhum exagero. Como diz Silviano Santiago na apresentação da correspondência com Drummond: "Mário é um doador. Comunica-se com o interlocutor pelo desperdício do que lhe sobra".

"João Guimarães Rosa: Correspondência com Seu Tradutor Italiano Edoardo Bizzarri" (Nova Fronteira, 208 págs. R$ 35)
O próprio Drummond é beneficiário desse espírito generoso, dívida intelectual que sempre reconheceu. Quando era ainda uma promessa de poeta, em 1924, Drummond lutava para se livrar do peso da cultura francesa. "Detesto o Brasil como a um ambiente nocivo à expansão do meu espírito", queixava-se. Mas não sem conflito: "Como acho indecente continuar a ser francês no Brasil, tenho que renunciar à única tradição verdadeiramente respeitável para mim". A fixação na tradicional arte européia era tratada como doença estética nos anos 20: chamava-se "moléstia de Nabuco", referência ao erudito monarquista Joaquim Nabuco, que fez escola ao se render à sofisticação da literatura francesa.

Mário logo diagnosticou a enfermidade em Drummond e partiu para a cura atacando seu maior ídolo, Anatole France. "O mal que esse homem fez a você foi torná-lo cheio de literatices, cheio de inteligentices, abstrações em letra de fôrma, sabedoria de papel." O problema, claro, não era Anatole, mas o próprio Drummond. "[Anatole] representou sua época. Não é um passadista, mas se você tiver as idéias dele, será um horroroso, ridículo passadista." E, depois da dura, o conselho amigo: "Você faça um esforcinho para abrasileirar-se. Depois se acostuma, não repara mais nisso e é brasileiro sem querer".

"Carlos e Mário" (Bem-Te-Vi, 614 págs., R$ 190)
Foi assim, nas mãos do parteiro Mário, que nasceu um dos maiores poetas brasileiros. Foi um parto difícil. A ascendência do modernista consagrado era tão avassaladora que não havia como escapar da "angústia da influência", com perdão pelo anacronismo da expressão. Nesse ponto, o autor de "Paulicéia Desvairada" o sossega: "Em última análise tudo é influência neste mundo. Além do mais se tem que distinguir entre o que é influência e o que é revelação da gente própria. Muitas vezes um livro revela pra gente um lado nosso ainda desconhecido. O livro não faz que apressar a apropriação do que é da gente". E recomenda: "Fuja dos processos muito pessoais de exteriorização dos outros. Nunca fuja de influências espirituais".

O problema da influência é assunto recorrente entre literatos. Numa carta a Sabino, outro jovem promissor, o professor Mário volta ao tema, desestimulando-o a escrever como Machado de Assis: "Você se esculhamba, se perde". O ideal seria achar um estilo correspondente. "Machado de Assis não deve ser para você um companheiro de vida, mas apenas um tesouro onde você vai roubar. Roube dele tudo quanto possa ser útil a você, jogando o resto fora. Mas sempre não se esquecendo que você pode roubar errado."

"Cartas a um Jovem Escritor e Suas Respostas" (Record, 142 págs., R$ 25)
Outra fonte de angústia dos jovens escritores é a síndrome do segundo livro. Sabino, em 1945, após fazer sucesso com a primeira novela, "A Marca", estava empacado, sem direção, "acovardado", na avaliação severa de Mário. Precisava de um cutucão, e Mário não o negou: "Jogue todas as suas cartas na mesa e não blefe. E se o livro não sair bom, diga: perdi. E comece outra partida. Porém no livro fracassado você terá um caminho". E concluiu: "É misterioso como o melhor pode errar mais. Há os que escorregam apenas. Mas os melhores quebram a cabeça".

Clarice Lispector, na mesma época, enfrentava o mesmo fantasma. Tinha acabado de publicar "Perto do Coração Selvagem", uma revelação, tendo sido elogiada até pelo avesso, acusada de emular ninguém menos que James Joyce e Virginia Woolf, autores que ela ainda não lera, como escreveu a uma irmã. De qualquer maneira, a contrapartida do sucesso precoce é a obrigação de corresponder a uma expectativa gerada. Isso incomoda. Com aquela sua ambigüidade sutilmente reveladora, Clarice se abriu com Lúcio Cardoso: "Antes de começar a escrever eu tinha a impressão de que ia lhe contar [...] como eu tenho medo de ser uma 'escritora' bem instalada, como eu tenho medo de usar minhas próprias palavras, de me explorar". Ia contar, não. Contou. E o fez "num impulso de sinceridade e confissão".

"Correspondências - Clarice Lispector" (Rocco, 336 págs., R$ 37)
A questão da sinceridade, aliás, é um terceiro problema dos escritores neófitos, depois da angústia da influência e da síndrome do segundo livro. Problema artístico, caro leitor, não existencial. Honestidade, só se for para com as próprias idéias. João Cabral, por exemplo, em carta à própria Clarice, diz ter atingido esse ideal apenas em "Psicologia da Composição". Seco nos versos, o poeta se derrama na carta em auto-referências, mas logo se repreende: "Por isso é que evito o espontâneo e o fluente: porque o meu espontâneo é tão besta que dá vergonha".

Mário de Andrade assinaria embaixo. "Você, por favor, nunca venha me argumentado com as palavras 'espontaneidade' e 'sinceridade'", respondeu certa vez a Sabino. "Tenho verdadeiro horror delas. É a vaidade e também a desonestidade do artista que as inventou. É a eterna e repulsiva confusão entre o artista e a obra-de-arte que lhes dá uma aparência de falsa legitimidade."

"João Guimarães Rosa: Correspondência com Seu Tradutor Alemão Curt Meyer-Clason" (Nova Fronteira, 448 págs. R$ 49)
Mas atenção, leitor: não confunda esses vícios com a virtude da autenticidade. Eis aí um predicado artístico a ser valorizado. É o que faz Guimarães Rosa, em carta ao seu tradutor italiano. "O sertão é de suma autenticidade", escreveu o autor de "Grande Sertão: Veredas". "Quando escrevi o livro, eu vinha de lá, dominado pela vida e pela paisagem sertanejas." É a melhor chave para a interpretação do mais inventivo dos escritores brasileiros. Sua criatividade vem sobretudo da terra e do matuto, e não dos livros, que ele, erudito, devorava. "Como eu, os meus livros, em essência, são 'antiintelectuais' —defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana."

Poliglota, por força da carreira diplomática, Guimarães Rosa acompanhava de perto as traduções de seus livros. Contou com bons tradutores, mas nem sempre deu sorte. A tradução para o inglês, por exemplo, mereceu reparos, confidenciados ao tradutor alemão à guisa de orientação sobre o que não fazer. "Tudo virou água rala, mingau", afirma sobre uma passagem. "Não viram que o livro é tanto um romance quanto um poema grande, também." De um modo geral, no entanto, não se incomodava que os tradutores mudassem o original, desde que deixassem intactas a música e a poesia. Ao contrário, estimulava-os a cortar o que, em outra língua, seria "inútil excrescência". Em italiano e alemão, seus livros seriam mais "fáceis", até melhores em alguns pontos, como reconhece o autor, que aproveitaria um ou outro comentário para alterar edições posteriores em português.

"Querido Poeta - Correspondência de Vinicius de Moraes" (Companhia das Letras, 376 págs., R$ 41)
É comum autores aceitarem mudanças, às vezes não tão pontuais como no caso do tradutor de Guimarães. Ezra Pound, para ficar no clássico exemplo de intervenção bem-sucedida, cortou "A Terra Desolada", de Eliot, a ponto de tornar o poema um marco do modernismo, dedicado, em reconhecimento, ao "miglior fabbro". Entre os brasileiros, a figura desse artesão discreto também existe. Mário de Andrade era um deles. Numa das primeiras poesias que Drummond lhe enviou, Mário cortou os abundantes galicismos, como possessivos e artigos indefinidos, e insistiu para o amigo mantivesse, em nome da coloquialidade, uma regência gramaticalmente incorreta: "O poeta chega na estação". Agradecido, Drummond acolheu a maioria das sugestões.

Às vezes, as idéias ficam no meio do caminho. No início dos anos 70, Vinicius de Moraes escreveu ao Chiquérrimo (como ele chamava Chico Buarque) e propôs uma "aparafusada geral" na letra de "Valsinha", aquela que começa: "Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar...". Na realidade, queria mais que aparafusar. Queria mudar uns versos. Um deles ("e não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar") ficaria assim: "E não falou mal da poesia como mania sua de falar". Chico ficou "meio embananado" com a carta do parceiro (Vinicius fez a música). Enrolou, cheio de dedos, mas não cedeu: "Prefiro que o nosso personagem maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia". Também não aceitou o "vestido de dourado" do Poetinha: "Eu gosto de cantar vestidodecotado". Mais diplomaticamente, Chico considerou: "Estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, talvez dificultem um pouco a compreensão imediata". E a música ficou como a conhecemos.

Bem, caro leitor, fico por aqui. Mas não quero me despedir sem indicar um livro de Guimarães. Embora não seja um livro de cartas, voltei a ele depois de ler a correspondência com o tradutor italiano. Trata-se de "Cara-de-Bronze", que faz parte do "Corpo de Baile". Faço, a seguir, um resumo do resumo que Guimarães fez ao tradutor: "O 'Cara-de-Bronze' era do Maranhão. Mocinho, fugira de lá, pensando que tivesse matado o pai. Veio, fixou-se na ambição e no trabalho, ficou fazendeiro, poderoso, rico. Triste, fechado, exilado, imobilizado pela paralisia (que é a exteriorização de uma como que 'paralisia da alma'), parece misterioso, e é; porém, seu coração, na última velhice, estalava. Então, sem se explicar, examinou seus vaqueiros para ver qual teria a mais viva e 'apreensora' sensibilidade para captar a poesia das paisagens e dos lugares. E mandou-o à sua terra, para, depois, poder ouvir, dele, todas as belezas e poesias de lá".

Não é um convite à leitura? Em "Cara-de-Bronze", "o que há, nos ditos dos vaqueiros, são tentativas de definição de poesia", diz Guimarães. O que há é até mais que isso. Abra o livro ao acaso e tropeçará com a própria poesia. Como esta fala rústica do homem do sertão: "A saudade é o braço-e-mão do coração, e que, certas horas, quer segurar demais em alguma pessoa ou coisa". Ave, palavra!

Agora sim, despeço-me. Receba, leitor, meu melhor abraço. E escreva.

Oscar Pilagallo, 48, jornalista, é autor de "O Brasil em Sobressalto", "A Aventura do Dinheiro" e da série "A História do Brasil no Século 20". Missivista ocasional, veste a carapuça mencionada por Manuel Bandeira.

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