Folha Online sinapse  
17/02/2004 - 02h58

Leia capítulo de "Flush", de Virginia Woolf

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo o primeiro capítulo do livro "Flush - Memórias de um Cão" (L&PM, 152 págs., R$ 26), de Virginia Woolf, livro citado na seção "Leituras Cruzadas" do Sinapse de fevereiro de 2004.

CAPÍTULO I: THREE MILE CROSS

É fato amplamente conhecido que a família de origem do protagonista destas memórias remonta a períodos antiqüíssimos. Sendo assim, não é de se estranhar que a pró--pria gênese de seu nome esteja perdida na incerteza. Há vários milhões de anos, o país que hoje se chama Es-panha agitava-se indócil na efervescência da criação. Eras transcorreram; a vegetação apareceu; onde há vegetação, a lei da Natureza decreta que devam existir coelhos; e, onde existem coelhos, a Providência Divina ordena que existam cães. Não há nada nesta afirmação que suscite questio-namentos ou comentários. Mas as dúvidas e as dificuldades surgem ao nos perguntarmos por que o cão que capturou o coelho foi chamado de Spaniel. Alguns historiadores dizem que, quando os cartagineses aportaram na Espanha, os soldados rasos gritavam em uníssono: "Span! Span!" — já que coelhos disparavam como flechas do interior de todas as moitas e arbustos. Os coelhos davam vida àquela terra. E span, na língua dos cartagineses, significa coelho. Assim, a terra foi batizada de Hispania, ou seja, "coelhân-dia". E os cães, que vinham sempre no encalço dos coelhos, foram apelidados de spaniels, ou "cães-coelheiros".

Muitos de nós esqueceriam o assunto por aí. Mas a verdade nos compele a lembrar que há outra linha de pensamento defendendo uma teoria totalmente diferente. Segundo esses estudiosos, a palavra Hispania não tem absolutamente nada a ver com a cartaginesa span. Hispania vem da expressão basca españa, que significa borda ou fronteira. Se for assim, então coelhos, arbustos e soldados — todos os elementos daquele cenário tão agradável e romântico — precisam ser apagados da mente; e assim devemos simplesmente supor que um Spaniel chama-se spaniel porque a Espanha chama-se España. Existe ainda uma terceira escola de estudiosos: para esses, do mesmo modo que um amante chama a sua companheira de coisas como "monstrinho" ou "maca-quinha", também os espanhóis cha-mavam seus cães preferidos de "tortos" ou "desfigurados" (a palavra españa também pode assumir esses significados), porque um spaniel é, sabi-damente, o oposto disso — mas essa conjectura é extravagante demais para ser levada a sério.

Deixando para trás tais teorias, além de muitas outras que poderiam fazer com que nos detivéssemos aqui, chegamos ao País de Gales em meados do século X. O spaniel já estava lá, trazido, segundo algumas fontes, pelo clã espanhol de Ebhor ou de Ivor havia muitos séculos; e, certamente, em meados do século X, era um cão de alta reputação e valor. "O spaniel do Rei vale uma libra", Howel Dha* registrou em seu Livro de Leis. E, quando se pensa no que era possível comprar com uma libra no ano 948 d. C. — esposas, escravos, cavalos, bois, perus e gansos —, fica claro que o spaniel era um cão de reputação e valor. Ele já tinha seu lugar ao lado do Rei. Sua família era mais honrada do que a de muitos monarcas famosos. Ele circulava livremente em palácios onde membros das famílias reais dos Plan-tagenet e dos Tudor e dos Stuart chafurdavam na lama para ganhar destaque. Muito antes de sobrenomes notáveis como Cavendish e Russel terem subido um degrau acima da gen-talha dos Smith, Jones e Tomkin, a família spaniel já era um clã distinto e à parte. Os séculos fizeram seu papel, e ramos menos importantes separaram-se do tronco principal.

Gradualmente, à medida que a história inglesa seguiu seu curso, surgiram pelo menos sete famílias spaniel de renome — os clumber, os sussex, os norfolk, os black field, os cocker, os irish water e os english water —, todas descendentes dos spaniels pré-históricos, mas com características distintas entre si; e não há dúvida de que reivindicavam seus privilégios em nome desta distinção. A existência de uma aristocracia de cães durante o reinado da Rainha Elizabeth é comprovada pelo relato de Sir Philip Sidney* em sua obra Arcadia: "... galgos, spaniels e cães de caça equivalem, nesta ordem, a lordes, cavalheiros e vassalos da esfera canina".

No entanto, se por conta disso formos impelidos a acreditar que os spaniels seguiam o exemplo humano, admirando os galgos como seus superiores e classificando os cães de caça a um nível mais baixo, somos obrigados a admitir que a aristocracia deles baseava-se em razões mais justas do que a nossa. Pelo menos deve ser essa conclusão a que chega qualquer pessoa que estude as leis do Spaniel Club. Essa nobre associação determina, de maneira bem clara, quais são os defeitos e as virtudes de um spaniel. Olhos claros, por exemplo, não são desejáveis; orelhas curvadas são ainda piores; nascer com o focinho claro ou com um topete é pior do que a morte. Os méritos do spaniel são definidos com a mesma clareza. Seu rosto deve ter linhas regulares, sem que haja uma curva muito acentuada até o focinho; a cabeça deve ser relativamente arredondada e bem desenvolvida, de modo que haja espaço bastante para a força do pensamento; os olhos devem ser proeminentes, mas não saltados; a expressão geral, de inteligência e doçura. O spaniel que exibe tais características deve ser promovido e reproduzido; o spaniel que seguidamente gera crias com topete e focinho claro terá suspendidos os privilégios e os emolumentos reservados à sua raça. Portanto, os juízes determinam as leis e, determinando as leis, impõem punições e privilégios para assegurar o cumprimento da lei.

Mas, se voltarmos nossa atenção para a sociedade humana, veremos apenas caos e confusão! Nenhum clube tem esse tipo de jurisdição sobre as misturas raciais entre os homens. O Herald's College, que guarda os registros dos escudos de armas das famílias nobres, é a nossa instituição que mais se aproxima do Spaniel Club. Pelo menos, tenta de alguma forma preservar a pureza da família humana. Mas, quando se pergunta o que constitui um nascimento nobre — se os olhos devem ser claros ou escuros; as orelhas, curvadas ou retas; os topetes, fatais ou não —, os juízes simplesmente mostram o escudo de armas que representa a linhagem do indivíduo em questão. Talvez a pessoa nem mesmo tenha direito a um escudo de armas. Nesse caso, não é ninguém. No entanto, provar que seus dezesseis bisavós eram nobres — garantindo assim o direito de usar um brasão — basta para afirmarem que o indivíduo não nasceu simplesmente, mas que nasceu nobremente. Assim, nem mesmo um reles saleiro em Mayfair, uma das áreas mais chiques de Londres, deixa de ter gravado seu leão deitado ou sua sereia empinada. Até mesmo os vendedores de roupa de cama exibem seu escudo de armas sobre a porta, como se aquilo provasse que é seguro dormir nos lençóis vendidos por eles. Em qualquer lugar, a posição social é admirada, e suas virtudes são ostentadas. No entanto, quando se examina as Casas Reais de Bourbon, de Habsburgo e de Hohenzollern, decoradas com infindáveis brasões e escudos de armas, incon-táveis leões e leopardos, deitados ou empinados, percebe-se que seus membros hoje se encontram exilados, afastados das posições de autoridade e julgados como não merecedores de respeito. Não há mais nada a fazer além de sacudir a cabeça e admitir que os juízes do Spaniel Club foram mais coerentes em seu julgamento. Para reforçar a idéia dessa lição, deixamos de lado assuntos de tão alta importância e nos voltamos aos primeiros meses de vida de Flush, com a família dos Mitford.

Por volta do final do século XVIII, uma família da raça mais famosa entre os spaniels vivia perto de Reading*, na casa de um certo Doutor Midford ou Mitford. Este senhor, seguindo os padrões do Herald's College, escolheu escrever seu nome com um t e, portanto, clamava descendência da família dos Mitford do Castelo de Bertram, em Nothumberland. Sua esposa, uma certa Senhorita Russell, era descendente legítima, ainda que de maneira remota, da família do Duque de Bedford. A formação de casais entre os ancestrais do Doutor Mitford, no entanto, foi con-duzida sem que se desse a menor atenção aos princípios do sangue puro, de maneira que juiz nenhum poderia ter admitido sua alegação de que seria fruto de uma linhagem nobre nem permitiria que perpetuasse a espécie. Seus olhos eram claros; suas orelhas, curvadas; sua cabeça exibia o topete fatal. Em outras palavras, ele era completamente egoísta, descuidadamente extravagante, mundano, falso e viciado em jogo. Gastou toda a sua fortuna, assim como a da esposa, além das rendas da filha. Abandonou-as quando passou por um momento de prosperidade e as sugou quando viveu um período de doença. Mas é preciso dizer que tinha dois pontos a seu favor: sua imensa beleza pessoal — era tal qual um Apolo, até que a gula e o abuso do álcool transformassem Apolo em Baco — e sua imensa afeição por cães. Mas não restam dúvidas de que, se existisse um Clube de Homens, assim como existe o Spaniel Club, não adiantaria nada escrever Mitford com t em vez de d nem chamar os Mitford do Castelo de Bertram de primos: nada teria sido suficiente para protegê-lo da humilhação e do desprezo, de todas as punições reservadas aos fora-da-lei e àqueles que estão no ostracismo; de ser classificado co-mo um homem-vira-lata, impróprio para dar continuidade à sua espécie. Mas ele era um ser humano. Portanto, na-da o impedia de casar-se com uma lady autêntica — por nas-ci-mento e criação —, de viver mais de 80 anos, de possuir di-versas gerações de galgos e de spaniels e de gerar uma filha.

Nenhum tipo de pesquisa foi capaz de determinar com exatidão o ano de nascimento de Flush, isso sem falar no mês ou no dia; mas é provável que tenha nascido no início de 1842. Também é provável que fosse descendente direto de Tray (nascido em 1816), cujas características, infelizmente preservadas apenas pelo meio duvidoso da poesia, demonstram que ele era um cocker spaniel ruivo, merecedor de todos os méritos possíveis. Há razões de sobra para acreditar que Flush era filho daquele "cocker spaniel muito velho", pelo qual o Doutor Mitford recusou uma oferta de vinte guinéus "por conta de sua superioridade no setor". Por azar, é também na poesia que está a descrição mais detalhada do próprio Flush quando filhote. Sua pelagem tinha aquele tom castanho-escuro específico "que o sol deixa dourado". Seus olhos eram "cor de avelã, espertos e meigos". Suas orelhas eram "felpudas", suas "patas esbeltas" eram "ador--nadas com franjas", e seu rabo era amplo. Descontando os floreios exigidos pelas rimas e a imprecisão do enuncia-do poético, não há nada aqui que contrarie as exigências do Spaniel Club. Não se pode duvidar de que Flush era um cocker de sangue puro, ostentando a pelagem ruiva e todas as características que marcam os melhores espécimes de sua raça.

Os primeiros meses de sua vida passaram-se em Three Mile Cross, um chalé simples, próximo a Reading. Já que os Mitford passavam por um período de privação — a única criada era Kerenhappock —, a própria Senhora Mitford costurava os forros das cadeiras, usando o tecido mais bara-to que estivesse à disposição; a peça de mobília mais importante parecia ser uma mesa grande; e o cômodo mais impor-tante, uma grande estufa — parece improvável que Flush tenha sido rodeado dos luxos que hoje estariam garantidos a cães de sua classe, como canis à prova de chuva, passarelas de cimento, uma empregada ou um garoto para cuidar exclusivamente dele. Mas seu desenvolvimento foi saudável; ele aproveitou, com toda a vivacidade de seu temperamento, a maior parte dos prazeres e algumas das licenciosidades normais de sua idade e seu sexo. É verdade que a Senhorita Mitford passava a maior parte do tempo confinada no chalé. Ela era obrigada a ler em voz alta para seu pai horas a fio; em seguida, tinha que jogar cartas com ele; e depois, quando ele finalmente tirava um cochilo, precisava acomodar-se à mesa da estufa e escrever sem parar, para tentar pagar as con--tas e saldar as dívidas*. Mas, no final, o momento tão esperado sempre acabava chegando. Ela colocava os papéis de lado, enfiava um chapéu na cabeça, pegava o guarda-chu-va e saía para uma caminhada pelos campos com seus cães. Por natureza, os spaniels são solidários; Flush, como sua história comprova, tinha uma afeição até mesmo excessiva pelas emoções humanas. A visão de sua querida dona finalmente respirando ar fresco, permitindo que o vento despenteasse seus cabelos brancos e colocasse um pouco de cor em sua face, enquanto as rugas de seu imenso cenho se suavizavam, excitavam-no a ponto de sair saltitando violentamente, em parte por alegria, em parte por solidariedade ao prazer dela. À medida que atravessava a grama alta, ele saltitava aqui e acolá, abrindo espaços na cortina verde. Os gló-bulos frios de orvalho ou de chuva espalhavam-se em borrifos furta-cor em volta de seu focinho; o solo, em alguns locais duro, em outros, fofo, frio, ou quente, pinicava, incomodava e fazia cócegas nas almofadinhas de suas patas. Além disso, um enorme sortimento de cheiros combinavam-se nas variações mais sutis possíveis e intrigavam suas narinas; cheiros fortes de terra, cheiros doces de flores; cheiros inomináveis de folhas e de amoras; cheiros acres quando atravessavam a estrada; cheiros pungentes quando entravam nos campos de feijões. Mas, de repente, o vento trazia um cheiro cortante, mais acentuado, mais forte, mais lancinante do que qualquer outro — um cheiro que invadia o cérebro dele e aguçava mil instintos, liberan-do um milhão de lembranças — o cheiro de lebre, o cheiro de raposa. Ele perseguia aquele odor como um peixe com pressa de subir o rio, pensando apenas em seguir em frente. Esquecia-se da existência de sua dona; esquecia-se da existência de toda a raça humana. Ouvia homens morenos gritando "Span! Span!" Ouvia chicotes estalando. Corria, disparava. Afinal, parava, atordoado; o encantamento se dissipara; vagarosamente, abanando o rabo em sinal de submissão, trotava pelos campos de volta ao local de onde a Senhorita Mitford gritava "Flush! Flush! Flush!" e sacudia seu guarda-chuva. E, pelo menos uma vez, o chamado foi ainda mais inevitável; a trompa de caça suscitou instintos mais profundos, aguçou emoções mais selvagens e mais fortes, que transcenderam a memória e fizeram com que se esquecesse da grama, das árvores, da lebre, do coelho e da raposa em um grito louco de êxtase. O amor fez brilhar sua tocha em seus olhos; ele ouviu a trompa de caça da Vênus. Antes de deixar completamente de ser um filhote, Flush já era pai.

Mesmo em um homem, tal conduta, no ano de 1842, teria exigido certa justificativa da parte do biógrafo; se fosse uma mulher, não haveria justificativa cabível; o nome dela simplesmente teria de ser riscado da página em desonra. Mas o código moral dos cães, por bem ou por mal, é certamente diferente do nosso, e não há nada nessa conduta específica de Flush que exija disfarces ou que invalide sua posição de representante puro e casto na sociedade da época. Há indícios, por assim dizer, que o irmão mais velho do Doutor Pusey estivesse ansioso para comprá-lo. Baseando-se no que se conhece a respeito do caráter do Doutor Pusey, é possível imaginar o caráter de seu irmão e, assim, concluir que havia algo de sério e de sólido, além da promessa de excelência, no futuro de Flush, independentemente da frivolidade que se apresentava em sua vida de filhote. Mas uma prova muito mais significativa a respeito da natureza encantadora de seus dons é que, apesar de o Senhor Pusey desejar comprá-lo, a Senhorita Mitford recusou-se a vendê-lo. Deve ter sido difícil para ela dispensar a soma oferecida pelo irmão mais velho do Doutor Pusey, já que estava absolutamente desorientada em relação a dinheiro, mal sabendo qual tragédia escrever ou qual anuário editar, recorrendo ao expediente odioso de pedir ajuda aos amigos. Haviam oferecido vinte libras pelo pai de Flush. A Senhorita Mitford bem que poderia ter pedido dez ou quinze por Flush. A soma de dez ou quinze libras era suntuosa, uma soma magnífica para se ter à disposição. Com dez ou quinze libras ela poderia ter reformado as cadeiras, poderia ter plantado mudas novas na estufa, poderia ter comprado um guarda-roupa completo, e "eu não comprei nenhum chapéu, nenhuma capa, nenhum vestido, nem mesmo um par de luvas, nos últimos quatro anos", escreveu em 1842.

Mas vender Flush era impensável. Ele fazia parte daquela rara ordem de objetos que não se pode associar a dinheiro. Será que ele não era de um tipo mais raro ainda que, por incorporar tudo o que é espiritual e que se encontra além do preço, transforma-se em um símbolo perfeito para o desinteresse da amizade; e pode ser oferecido, sob esse pretexto, para uma amiga que seja mais como uma filha do que como uma amiga, se é que alguém tem sorte bastante para ter uma pessoa assim; para uma amiga que fica reclusa durante todo os meses do verão em um quarto de fundos em Wimpole Street, para uma amiga que não é nada menos do que a poetisa mais audaz da Inglaterra, a brilhante, desenganada e adorada, a própria Elizabeth Barrett? Tais pensamentos vinham à mente da Senhorita Mitford com cada vez mais freqüência à medida que observava Flush rolando e correndo sob o sol; à medida que ela se acomodava ao lado do sofá da Senhorita Barrett em seu quarto em Londres, escuro e em tons de verde. Sim, Flush era digno da Senhorita Barrett; a Senhorita Barrett era digna de Flush. O sacrifício seria enorme, mas o sacrifício precisava ser feito. Assim, certo dia, provavelmente no início do verão do ano de 1842, um casal extraordinário deve ter sido avistado, descendo Wimpole Street — uma senhora idosa bem baixa, corpulenta e maltrapilha, com o rosto vermelho-vivo e os cabelos bem brancos, trazendo pela coleira um filhote de cocker spaniel dourado, muito vivaz, muito curioso e muito bem-criado. Percorreram quase toda a extensão da rua até pararem na frente do número 50. Não sem tremer, a Senhorita Mitford tocou a campainha.

Até mesmo nos dias de hoje, talvez ninguém seja capaz de tocar a campainha de uma casa em Wimpole Street sem tremer. É a rua mais imponente de Londres, a mais impessoal. De fato, quando o mundo parece estar se despedaçando em ruínas e a civilização parece tremer sobre as bases, basta ir até Wimpole Street, caminhar por aquela avenida, observar aquelas casas, avaliar sua uniformidade, maravilhar-se com as cortinas das janelas e com sua harmonia, admirar os batentes de latão polido das portas e sua regularidade, observar açougueiros oferecendo peças inteiras de carne e cozinheiras recebendo a mercadoria, calcular a renda de seus habitantes e deduzir daí sua conseqüente submissão às leis de Deus e dos homens — basta ir até Wimpole Street e beber profundamente da paz exalada dessa fonte pura para ostentar um suspiro de agradecimento por Wimpole Street permanecer lá, imutável, enquanto Corinto caiu e Messina desabou, enquanto coroas foram levadas pelo vento e antigos Impérios consumiram-se em chamas. Quando se sai de Wimpole Street e se entra em Oxford Street, uma prece enche o coração e sai dos lábios como uma súplica, para que nenhum tijolo de Wimpole Street seja deslocado, que nenhuma cortina seja lavada, que nenhum açougueiro deixe de oferecer seus tenros bifes e nenhuma cozinheira deixe de receber sua maminha, seu pernil, seu peito, suas costelas de cordeiro e seu filé para todo o sempre, porque, enquanto Wimpole Street conti-nuar lá, a existência da civilização estará garantida.

Mesmo hoje, os mordomos de Wimpole Street movimentam-se com solenidade; no verão de 1842, sua atitude era deliberadamente mais silenciosa. Naquele tempo, as leis da criadagem eram ainda mais rígidas e observadas com mais atenção; o ritual do avental de lã verde para limpar a prataria; do colete e casaca de tecido preto listrado para abrir a porta da frente. É provável, portanto, que a Senhorita Mit-ford e Flush tenham esperado pelo menos três minutos e meio à porta. Finalmente, no entanto, a porta do número 50 escan-carou-se; a Senhorita Mitford e Flush foram recebidos e convidados a entrar. A Senhorita Mitford era visita freqüen-te, não havia razão para surpresa, apesar de ela sempre se sentir um pouco oprimida ao observar a mansão da família Barrett. Mas o efeito produzido pela mesma ação sobre Flush deve ter sido extremamente desconcertante. Até o momento, ele não havia entrado em nenhuma casa a não ser o simples chalé em Three Mile Cross. Lá, o assoalho ficava descoberto, os capachos eram puídos, as cadeiras eram baratas. Aqui, nada ficava descoberto, nada era puído, nada era barato — isso Flush pôde constatar com uma olhadela. O Senhor Barrett, o dono da casa, era um comer-ciante rico; tinha uma extensa prole de filhos e filhas já crescidos e um séqüito, proporcionalmente grande, de serviçais. Sua casa era mobiliada de acordo com a moda do final da década de 1830, indubitavelmente guardando certo resquício da fantasia oriental que o guiara quando construiu uma casa em Shropshire e a adornou com os domos e as estruturas em forma de meia-lua da arquitetura moura. Aqui em Wimpole Street tal extravagância não seria admitida; mas é possível supor que os quartos escuros, de pé-direito alto, estivessem cheios de otomanas e de mogno enta-lhado; que as mesas fossem curvadas, com enfeites de filigrana sobre elas; que adagas e espadas estivessem penduradas nas paredes cor-de-vinho-escuro; que objetos curiosos, trazidos de sua propriedade nas Índias Orientais, estivessem acomodados nos nichos das paredes e que tapetes espessos e trabalhados enfeitassem o chão.

Mas enquanto Flush se apressava atrás da Senhorita Mitford, que seguia o mordomo, ele se impressionava mais pelo que farejava do que por aquilo que via. Pelo funil da escadaria subiam lufadas quentes de carnes assadas no forno, de frangos temperados, de sopas fumegantes — para narinas acostumadas ao parco sabor do cozido de carne com fritas de Kerenhappock, aqueles cheiros eram quase tão suculentos quanto o alimento em si. Misturados ao cheiro da comida, havia outros odores — cheiros de cedro, e de sândalo, e de mogno; cheiros de corpos masculinos e de cor-pos femininos; de empregados e de empregadas; de casacos e de calças; de armações de vestidos e de capotes; de cortinas tecidas, de cortinas de plush; de cinzas de carvão e de fumaça; de vinho e de charutos. Cada aposento por que passava — sala de jantar, sala de visitas, biblioteca, quarto — bafejava sua contribuição para a mistura geral; ao mesmo tempo, à medida que ele pousava uma pata seguida da outra no chão, sentia-se como que acariciado e envolvido pela sensualidade dos preciosos tapetes felpudos que se fechavam amorosamente ao redor de seus pés. Enfim, chegaram até uma porta fechada nos fundos da casa. Bateu-se de leve na porta, e ela se abriu lentamente.

O quarto da Senhorita Barrett — pois era isso que havia atrás da porta — era provavelmente escuro, de acordo com todos os relatos. A luz, normalmente impedida de entrar por uma cortina de tecido verde adamascado, no verão ficava ainda mais fraca por conta da hera, dos feijões-escarlates, dos convólvulos e dos nastúrcios que cresciam na floreira da janela. De início, Flush não conseguia distinguir nada naquele quarto esverdeado, a não ser cinco globos brancos que brilhavam e pairavam no ar de maneira misteriosa. Porém, mais uma vez, foi o cheiro do quarto que o arrebatou. Apenas um estudioso que tenha descido, pé ante pé, até o fundo de um mausoléu, encontrando uma cripta incrustada de mofo, escorregadia de limo, exalando cheiros acres de apodrecimento e de antigüidade, enquanto bustos semidestruídos de mármore pairavam no ar, e que só era capaz de enxergar o seu redor com a ajuda da luz fraca que vinha da pequena lamparina que carregava na mão, direcionando-a para cima e para baixo, de um lado para o outro, olhando ora aqui, ora ali — só as sensações de um explorador que houvesse penetrado nas câmaras funerárias de uma cidade em ruínas poderiam ser comparadas à confusão de emoções que invadiram os nervos de Flush quando ele entrou pela primeira vez no quarto de uma pessoa inválida, em Wimpole Street, e sentiu o cheiro da eau-de-Cologne*.

Muito lentamente, muito vagamente, depois de mui-to fuçar e sentir o terreno cautelosamente, Flush começou a distinguir o delineamento de diversos itens de mobília. Talvez aquele enorme objeto ao lado da janela fosse um guarda-roupa. Ao lado dele, parecia, havia uma cômoda. No meio do quarto, emergia à superfície uma mesa que parecia ter um anel à sua volta; e então afloraram as estruturas amorfas de uma poltrona e de outra mesa. Mas tudo estava disfarçado. Em cima do guarda-roupa havia três bustos brancos; a cômoda trazia prateleiras de livros em seu tampo; as prateleiras eram forradas de merino carmim; sobre o lavatório, havia uma torre de estantes; sobre as estantes que ficavam sobre o lavatório havia mais dois bustos. Nada no quarto era o que era; tudo era algo mais. Nem a persiana era uma simples persiana de musse-lina; era um tecido pintado com um desenho de castelos, de caminhos e de bosques de árvores, além de diversos cam--poneses pas-seando. Espelhos distorciam ainda mais esses objetos por si já distorcidos, de maneira que parecia haver dez bustos de dez poetas em vez de cinco; quatro mesas em vez de duas. E, de repente, uma confusão ainda mais aterradora instalou-se. De repente, Flush avistou outro cão, com olhos brilhantes que cintilavam e a língua pendurada para fora da boca, encarando-o de um buraco na parede! Parou, assombrado. Depois seguiu seu caminho, apavorado.

Às vezes avançando, às vezes recuando, Flush não ouvia quase nada, a não ser o farfalhar distante do vento pas-sando através das copas das árvores, o murmúrio e o taga-relar de vozes conversando. Deu continuidade a sua investigação, cuidadosamente, como um explorador avançando floresta adentro com passos cautelosos, sem saber direito se a sombra logo adiante é um leão ou se a raiz mais à frente é uma serpente. Finalmente, no entanto, teve consciência dos enormes objetos que se confundiam acima dele e, nervoso como estava devido aos acontecimentos da última hora, escondeu-se, tremendo, atrás de um biombo. As vozes cessaram. Uma porta fechou-se. Por um instante, ele parou, desnorteado, nervoso. Então, com a brutalidade do ataque de um tigre com as garras para fora, uma lembrança veio à sua mente. Sentiu-se sozinho — abandonado. Cor-reu até a porta. Estava fechada. Arranhou-a com a pata, esperou. Ouviu passos que desciam. Sabia que eram os pas-sos conhecidos de sua dona. Pararam. Não — logo recomeçaram, e seguiram, escada abaixo. A Senhorita Mitford descia as escadas lentamente, com relutância, com pesar. E, à medida que avançava, à medida que o som ia ficando mais fraco, o pânico abateu-se sobre ele. Era uma porta sendo fechada depois da outra em sua cara à medida que a Senhorita Mitford descia as escadas; fechavam-se para os campos, para a liberdade, para as lebres; para a grama; para a sua adorada e venerada dona — aquela senhora tão querida que o banhara, que o repreendera com tapas, que o ali--mentara com a comida de seu próprio prato, apesar de ela mesma não ter muito o que comer —, para tudo que ele conhecia como alegria, amor e bondade humana! Pronto! A porta da frente fechou-se em um estrondo. Ela o abandonara.

Então, uma enorme onda de desespero e de angústia abateu-se sobre ele, a irrevogabilidade e a implacabilidade do destino atingiram-no com tanta força que ele ergueu a cabeça e uivou alto. Uma voz disse "Flush". Ele não ouviu. "Flush", repetiu uma segunda vez. Ele se assustou. Achou que estava sozinho. Virou-se. Será que havia mais alguma coisa viva além dele no quarto? Será que havia algo no sofá? Com a insana esperança de que esse ser, seja lá o que fosse, pudesse abrir a porta, de modo que ele fosse capaz de sair correndo atrás da Senhorita Mitford e alcançá-la — que essa fosse alguma brincadeira de esconde-esconde, como as que eles costumavam fazer na estufa, em casa —, Flush disparou para o sofá.

"Ah, Flush", disse a Senhorita Barrett. Pela primeira vez, ela o olhou nos olhos. Pela primeira vez, Flush viu a dama deitada no sofá.

Os dois se surpreenderam. Cachos pesados pendiam das laterais do rosto da Senhorita Barrett; grandes olhos espertos brilhavam; uma grande boca sorria. Orelhas pesadas pendiam das laterais do rosto de Flush; seus olhos também eram grandes e inteligentes; sua boca estava aberta. Havia algo de comum entre os dois. Enquanto encaravam um ao outro, pensaram: aqui estou eu. Então, sentiram: mas que diferente! O rosto dela era pálido, de uma inválida, afastado do ar, da luz, da liberdade. O dele era o rosto saudável e afetuoso de um animal jovem; cheio de saúde e de energia. Separados violentamente, apesar de originados no mesmo molde, será que um completava o que estava latente no outro? Ela realmente poderia ser tudo aquilo, mas ele... não. Entre os dois existia o maior abismo que pode separar um ser do outro. Ela falava. Ele era mudo. Ela era uma mulher; ele era um cão. Assim, intimamente ligados; assim, imensamente separados, um encarava o outro. Então, de um salto, Flush subiu no sofá e se acomodou no lugar em que permaneceria para todo o sempre — sobre a manta aos pés da Senhorita Barrett.

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