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30/03/2004 - 03h12

Projetos suspensos

PAULO DE CAMARGO
free-lance para a Folha de S.Paulo

Após 11 anos de educação básica, quatro ou cinco de graduação e pelo menos dois de mestrado e três de doutorado, o pesquisador consegue o almejado título de doutor, o que o torna apto a iniciar sua carreira. Mal sabe ele, no entanto, que, ao receber o diploma, em média aos 35 anos, esse "recém-nascido" pesquisador estará apenas no início da tarefa mais difícil: encontrar um lugar ao sol.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
José Artur Fernandes: "O valor da bolsa acaba forçando as pessoas a procurar subempregos"
No Brasil, os mais de 20 anos de estudo não são suficientes nem para a obtenção de uma bolsa, já que o funil é muito estreito. As principais agências de financiamento de pesquisas no país não atendem nem a 10% da demanda por bolsas. Para ter uma idéia, somente o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) tem cerca de 16 mil pedidos de bolsa para 2004, dos quais espera atender a apenas mil.

Além de trabalhar nas instituições públicas —onde a concorrência acirrada é combinada com uma remuneração que deixa a desejar—, o pesquisador pode tentar ir para as faculdades privadas (e se dedicar quase integralmente a dar aulas para aumentar seu salário), ser contratado pelo departamento de pesquisa de uma empresa (e perder em autonomia no direcionamento de seu trabalho) ou ser adotado por um centro do exterior (e deixar o país). Escolhas nada fáceis para quem sonhou por anos seguir a carreira de cientista no país onde nasceu.

As dificuldades começam nas universidades públicas, onde os concursos para ocupar uma cadeira de docente estão cada vez mais raros. Nas universidades federais, segundo a Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior), não há abertura significativa de vagas desde o governo de Fernando Collor (1990-1992).

Caso supere esse obstáculo, o profissional contará com estabilidade, mas terá também de lidar com baixos salários —no topo da carreira, um professor de universidade federal pode chegar a receber um salário de, no máximo, R$ 4.900, segundo a Andes.

Patricia Narvaes: "Achei que bastava me doutorar, mas encontrei muita competição"
Quem se depara com essa situação não imagina que a pós-graduação sempre foi a menina-dos-olhos do sistema educacional brasileiro. Estruturada a partir da década de 50, levou o país à liderança da produção científica na América Latina. Hoje, o sistema titula quase 7.000 doutores por ano —e tem a meta, estipulada pelo governo Lula, de chegar a 10 mil anualmente.

A superprodução de cérebros, no entanto, precisa vir acompanhada de uma política mais abrangente para a área, segundo Elizabeth Balbachevsky, 47, pesquisadora do Nupes (Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior), da Universidade de São Paulo.

"Quando resolvi ser pesquisadora, achei que bastava me doutorar, mas encontrei um cenário de muita competição", conta a bióloga Patrícia Narvaes, 34, que recebeu o título em setembro passado e, até agora, pôde participar de apenas um concurso, no Instituto Butantan, em São Paulo.

Enquanto se prepara para outro, fora de sua área de atuação, Patrícia estuda alternativas, como procurar uma vaga de professora em faculdade particular ou prestar concursos em outros Estados. "Se não conseguir, penso até em mudar de área", afirma.

O biólogo José Artur Barroso Fernandes, 37, vive um dilema parecido. Fernandes está no segundo ano do doutorado na Faculdade de Educação da USP e concorre pela terceira vez a uma bolsa. Se não tiver sucesso, terá de recorrer, como fez no mestrado, a empréstimos e a trabalhos temporários para conseguir continuar sua pesquisa em educação ambiental.

Mesmo se conseguir a bolsa, Fernandes sabe que não será fácil sobreviver. O CNPq paga R$ 1.267 por mês ao doutorando, e as agências de financiamento de pesquisa proíbem o vínculo empregatício a seus bolsistas. "Esses valores acabam forçando as pessoas a procurar subempregos", diz.

A situação é tão conhecida que, em meados deste mês, em uma decisão inédita, o CNPq e a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) decidiram permitir a mestrandos e a doutorandos bolsistas que também se dediquem à docência, como professores substitutos em instituições públicas, para melhorar seus rendimentos.

Ainda assim, segundo o professor Manoel Barral-Netto, do CNPq, muitos desses profissionais altamente qualificados vão ser obrigados a mudar de rota. "O mercado acadêmico não pode ser mais a única meta dos doutores recém-formados. Atingiu-se um ponto de saturação", diz.

Jéferson Ortiz: "Seria injusto se eu me radicasse no exterior"
Depois das instituições públicas, a opção mais imediata dos doutores é, em geral, procurar uma vaga em universidades particulares. Estas, para atender a exigências da Lei de Diretrizes e Bases (1996), são obrigadas a contratar uma cota mínima de mestres e doutores —33% de seu quadro total de professores.

O vento contrário, nesse caso, é a falta de tempo: contratados na maioria das vezes como horistas, ou seja, remunerados por hora de aula (entre R$ 20 e R$ 40, em média), esses potenciais pesquisadores acabam optando por aumentar essa carga ao máximo e deixam de lado a pesquisa.

Airton Carlos Almeida Borges, 50, fez essa escolha há 11 anos. Pós-doutor pela USP em astrofísica extragaláctica —área que estuda galáxias além da Via Láctea—, ele chegou a um ponto da carreira no qual teria de deixar o país se quisesse continuar a pesquisa. Mas temia que, ao voltar, não encontrasse perspectiva de conseguir um trabalho. "Via a situação de colegas que, ao voltarem, com família e filhos, não encontravam emprego", diz.

Borges acabou radicalizando e passou a dar aulas no Colégio Bandeirantes, uma escola de classe média alta na zona sul de São Paulo, onde ficou dez anos. Desde o ano passado, é professor de matemática aplicada no IBTA (Instituto Brasileiro de Tecnologia Avançada). "Aquilo de que abri mão na carreira ganhei na vida social e familiar", justifica.

Casado e pai de um filho, Borges afirma que não se sente frustrado por ter deixado a carreira na universidade pública e a pesquisa. "Continuo estudando para me manter atualizado, mas não quero mais ser pesquisador", diz. Sabe que ganha melhor do que se tivesse continuado na rota original, mas o preço pago foi ter deixado para trás mais de uma década de pesquisas científicas.

Para Elizabeth Balbachevsky, do Nupes-USP, os benefícios da entrada dos doutores nas instituições privadas não devem ser desprezados. "Isso foi bom para o país, pois colaborou para melhorar a qualidade do corpo docente", diz.

No entanto, mesmo esse mercado tende a se extinguir, com a progressiva titulação dos professores das próprias faculdades privadas. Para Carlos Benedito Martins, diretor do Núcleo de Estudos sobre Ensino Superior da UnB (Universidade de Brasília), a situação estará estagnada em breve. "Nem as universidades públicas nem as privadas poderão garantir a absorção dos doutores", alerta.

Um outro caminho leva doutores e pós-doutores em direção a empresas privadas.

O físico Marcelo Bueno, 35, é um dos que seguiram nesse caminho. Bueno concluiu doutorado e pós-doutorado na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) com o sonho de se tornar um pesquisador em sua área, a eletrodinâmica.

Hoje, é gerente comercial do Genius, um instituto de desenvolvimento de tecnologia criado pela Gradiente, que faz a ponte entre universidades e empresas. "Vivi um drama existencial quando resolvi deixar tudo em razão da falta de perspectiva financeira", lembra. "Mas agora me sinto plenamente realizado", diz.

Nem todos têm, como Bueno, a chance de descobrir um campo de atuação novo e permanecer no país. Sem perspectiva por aqui, alguns acabam aceitando o convite de instituições estrangeiras e partem. Os argumentos contrários —além dos óbvios, que se referem à distância da família, dos amigos e da cultura— incluem o peso de não poder devolver o que o país possibilitou ao profissional em anos de estudo.

É o caso do físico Jéferson Altenhofen Ortiz, 33, cientista formado pela Unicamp que desenvolve pesquisas sobre raios cósmicos de alta energia. Em seu doutorado, Ortiz permaneceu 15 meses nos Estados Unidos, no Bartol Research Institute, da Universidade de Delaware, com bolsa da Capes e estudando sob orientação de físicos renomados. No final do estágio, recebeu uma oferta para ficar por lá e fazer seu pós-doutorado.

Sem querer passar mais tempo longe da família, Ortiz recusou a oferta e voltou ao Brasil, acreditando que encontraria condições para seguir seu trabalho por aqui. "Acho que seria injusto se, depois de estudar com recursos do governo brasileiro, eu me radicasse no exterior", diz. Ao chegar, passou um ano tentando obter uma bolsa. "Na Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], disseram que meu projeto não era prioritário."

O cientista pesquisou por conta própria durante um ano e resolveu voltar para os EUA. Quando preparava as malas, obteve uma resposta positiva do CNPq, que lhe concedeu uma bolsa. "Acabei ficando, mas, se voltar a ter problemas desse tipo, terei de rever a decisão", afirma o cientista.

Com saudade, mas sem remorsos, a goiana Sandra Castro, 36, preferiu não arriscar e se fixou na Alemanha, depois de passar pelos EUA. Ela trabalha no ESO (European Southern Observatory), em Munique, desenvolvendo softwares para a análise dos dados obtidos pelos telescópios do projeto VLT (Very Large Telescope).

"Fazer pesquisa no Brasil é sempre um pouco frustrante, já que, volta e meia, há ameaças de falta de recursos", diz a pesquisadora, doutora em astrofísica pela USP e pela Universidade Columbia (EUA). "O melhor lugar para um pesquisador é aquele onde encontra condições de trabalho", defende.

O "êxodo" de cientistas brasileiros preocupa os órgãos financiadores. O CNPq, desde 1997, faz auditoria nas bolsas concedidas para pesquisadores que estudam fora.

O órgão estima que 2,5% dos bolsistas acabem ficando nos institutos estrangeiros. Nesses casos, o Tribunal de Contas da União pede ressarcimento do valor investido. Hoje, há 783 processos em curso, envolvendo cerca de R$ 265 milhões.

Para enfrentar esse cenário, o CNPq, em vez de pedir a devolução do dinheiro, vem negociando apoio à pesquisa como moeda de troca. De acordo com Erney Plessmann Jr., presidente do órgão, o instituto negociou com a Microsoft, no final de 2003, duas bolsas nos Estados Unidos. Em troca, autorizou que um cientista brasileiro (ex-bolsista) fosse contratado pela companhia sem o processo de ressarcimento.

De modo geral, quase todos os órgãos financiadores regionais reduziram o número de bolsas para o exterior por considerarem que o sistema do país é capaz de oferecer oportunidades similares. A Fapesp, por exemplo, não concedeu nenhuma bolsa de doutorado desse tipo em 2003.

O pesquisador Elisio Contini, que trabalha no projeto Labex-França (um "laboratório virtual" de ciências agrárias), da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), é favorável à internacionalização dos pesquisadores e afirma que há uma falsa polêmica quando se fala em evasão de cérebros. "Precisamos de mais cientistas brasileiros estudando nos grandes centros de produção do conhecimento, ainda que temporariamente. Muitos desses profissionais acabam voltando com uma bagagem enorme, que deve ser aproveitada."

O outro lado da moeda é que, enquanto alguns pesquisadores buscam oportunidades de trabalho em faculdades privadas, em empresas ou no exterior, as universidades públicas sofrem com a falta de professores qualificados. Nas instituições federais, esse déficit já chega a cerca de 8.000 docentes, segundo dados de 2002 reunidos pela Andes.

Na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a aposentadoria iminente de quatro pesquisadores colocou em risco a qualidade do único curso de pós-graduação em biomedicina do país avaliado com a nota 6, a maior dada pela Capes.

"Certamente, não vamos deixar o curso fechar, mas não há como substituir um professor com 30 anos de pesquisa por outro iniciante sem perda de qualidade", afirma o coordenador do programa, Márcio Nogueira de Souza. "Talvez percamos a nota 6", diz. Nos últimos dez anos, só houve um concurso para seu departamento.

Para a professora Elizabeth Balbachevsky, do Nupes-USP, o desafio agora não se resume a abrir vagas no sistema público, mas é mudar características históricas da pós-graduação, que, desde o início, se voltou quase exclusivamente para a pesquisa. "Qual é a vantagem de ter uma pós tão grande se ela só reproduz a torre de marfim universitária e não gera inovação tecnológica?", questiona.

O debate sobre a vinculação entre inovação tecnológica e pesquisa vem ganhando fôlego e lugar de destaque nas discussões sobre o rumo a ser dado à política da área no país.

Quem defende a inovação se espelha no que vem ocorrendo no restante do mundo desenvolvido, onde há uma acirrada disputa pela propriedade da ciência e da tecnologia, pela corrida por novas patentes e pelos lucros advindos dos direitos de propriedade. Trata-se de encontrar mecanismos para transformar a pesquisa em inovações tecnológicas —que poderão levar o país, segundo seus defensores, ao desenvolvimento econômico e à geração de empregos.

"Temos falado tanto em exclusão social, mas hoje vivemos outra, igualmente perigosa: a tecnológica", afirma o empresário Américo Martins Craveiro, 46, presidente da Anpei (Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras). Para Craveiro, a lentidão do crescimento dos processos de inovação é assustadora. "Corremos o risco de perder cada vez mais competitividade", alerta.

Há, porém, quem veja outros perigos. "A universidade só tem a obrigação de fazer pesquisa de boa qualidade, não necessariamente de caráter comercial", defende Abílio Baeta Neves, ex-presidente da Capes.

O cientista Elisio Contini publicou um estudo que mostra que a corrida internacional pelo conhecimento está quase toda concentrada em três grandes blocos: América do Norte; Japão e países do Leste Asiático; e Europa. Eles respondem por 85% dos gastos mundiais com pesquisa e desenvolvimento, investindo US$ 732 bilhões na área (leia textos às págs. 10 e 12).

No Brasil, nem sequer há consenso sobre quanto é investido em pesquisa. O Ministério da Ciência e Tecnologia trabalha com o dado de 1% do PIB (equivalente a cerca de R$ 1,3 bilhão), mas pretende redefinir a metodologia do cálculo por acreditar que o dado está superestimado. Há quem fale em 0,3% (R$ 390 milhões).

Mas, se a meta é chegar a 2%, como prega o governo federal, o país não poderá abrir mão de investimentos privados. "Há uma carência enorme de empresas que realizem pesquisas no Brasil. Se criarmos condições para que essas empresas se constituam ou para que multinacionais instalem seus centros de pesquisa aqui, criaremos mercado para os novos doutores", acredita Contini.

No meio dessa crise está a discussão sobre a Lei de Inovação, um conjunto de medidas que deve ser votado ainda neste ano pelo Congresso.

Quando entrar em vigor, a nova legislação poderá permitir, por exemplo, que o governo libere linhas de financiamento para empresas que realizem pesquisas de interesse da indústria. O governo planeja também a criação de uma agência que tenha como missão exclusiva estimular a pesquisa conjunta de empresas e centros de pesquisa em setores estratégicos.

Também neste ano deverá ser apresentado à comunidade acadêmica o novo Plano Nacional de Pós-Graduação, que estabelece as linhas prioritárias de estímulo à pesquisa para os próximos seis anos. Uma das principais novidades do programa é a intersecção da política de pesquisa com a política industrial do governo, justamente com o objetivo de estimular o investimento privado. "Temos recebido sinais importantes de que a indústria está disposta a cooperar", diz o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos.

"A exclusiva orientação acadêmica da pesquisa universitária é um anacronismo. A função da pós-graduação é formar o profissional da pesquisa necessária para o país em todas as áreas, mas, no mundo globalizado, essa função não pode ser aproveitada apenas no contexto acadêmico", diz a pesquisadora Elizabeth.

"Falar de inovação não quer dizer que se vá tirar recursos de áreas que não tenham aplicações industriais. São questões complementares. A pesquisa universitária tem uma lógica e uma ética que não podem ser confundidas com a lógica e a ética da empresa. A primeira visa ao conhecimento, e a segunda, ao lucro. A questão urgente é saber compatibilizar essas lógicas e essas éticas —esse é o desafio do qual não podemos fugir", acredita Carlos Vogt, presidente da Fapesp.

Esse equilíbrio entre interesses e investimentos públicos e privados ainda está muito longe de ser alcançado, mas parece ser um dos caminhos a serem percorridos.

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