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27/04/2004 - 02h46

Caminho das Pedras: O velho e o mar

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Folha de S.Paulo

Nesta sexta-feira, Dorival Caymmi entra em sua décima década de vida. Nascido em Salvador, Bahia, em 30 de abril de 1914, nos últimos 90 anos ele viveu praticamente todos os acontecimentos históricos mais importantes do século 20. Ainda que possuísse tamanha bagagem de vivência, resolveu plantar a flor de sua arte e de seu conhecimento no quintal da própria casa. Compondo canções populares desde 1930, fechou o cercado de sua obra ao redor dos temas da Bahia —o mar, os pescadores, a brisa praiana, as "pretas do acarajé"...

Zulmair Rocha - 8.dez.2000/Folha Imagem
Dorival Caymmi boceja durante entrevista no bairro de Botafogo, no Rio

Traduziu a Bahia pela lente do torrão local; ao mesmo tempo, revelava o próprio Brasil, ainda que de um microcosmo bem definido. Transformadas em tesouro e em história, suas canções possuem hoje o status de definidoras de uma época, de um país, de uma forma de amar.

Entre as muitas travessias vividas por Caymmi, uma das fundamentais foi a do estabelecimento de uma cultura popular —ou pop, diríamos hoje— de massa, a invenção da indústria fonográfica de um país que ainda seria percebido pelo mundo como musical. O primeiro marco divisório dessa trajetória seria a colisão artística entre Caymmi e a portuguesa criada no Rio de Janeiro Carmen Miranda (1909-55).

Ela fazia sucesso com suas marchinhas carnavalescas desde 1930. Em 1938, ele veio tentar a sorte musical no Rio. O encontro crucial para as carreiras de ambos se daria em 1939, quando cantassem juntos "O Que É Que a Baiana Tem?", em gravação Odeon e no filme "Banana da Terra". No lado B do disquinho de 78 rpm, estava "A Preta do Acarajé", também em duo.

Carmen solidificaria a partir do samba de Caymmi a imagem de falsa baiana de trajes carnavalescos e cheia de balangandãs na cabeça. Dorival ganhava existência artística nacional, encerrando de vez a era de cantor e autor de rádio escondido em Salvador.

O Brasil viveu, a partir do encontro, uma coqueluche de amor pela Bahia (os Anjos do Inferno gravaram em 1941 "Você Já Foi à Bahia?", de adivinhe quem). Em Dorival em pessoa, bateu saudade e melancolia. Desandou a gravar canções que falassem do pedaço de chão que ele havia deixado. Pôs-se a cantar os ímpetos de vida e morte do mar: "A Jangada Voltou Só" (1940) e "É Doce Morrer no Mar" (1941). Teve banzo da terra e dos ritmos da terra: "Samba da Minha Terra" (1940). Sentiu falta dos quitutes baianos e das baianas: "Requebre que Eu Dou um Doce" (1941) e "Vatapá" (1942). Relembrou a partida da Bahia: "Peguei um Ita no Norte" (1945). O mito estava pronto para eclodir.

Até 1947, Caymmi havia escrito 62 das 120 canções que assinaria a vida toda (segundo sua neta e biógrafa Stella). A melancolia de origem ia diminuindo enquanto se casava com Stella Maris e se tornava pai de família. Virou mais urbano, aproximou-se do samba-canção que desacelerava o samba e que ditaria regras na década de 50 e amansou o vozeirão para chorar "Nem Eu" (1952) e "Só Louco" (1955).

Da melancolia da fuga da origem à fossa do samba-canção, Dorival continuava triste e parecendo alegre. Em 1958, a geração bossa nova surgiu avisando sem palavras inteiras que iria radicalizar o que Caymmi já propunha desde ao menos 1949. No repertório inicial de João Gilberto estariam a velha "Samba da Minha Terra" e a recente "Saudade da Bahia" (1957). Caymmi fundara a bossa nova assim, sem perceber. Não à toa, gravou nos anos 60 com Tom Jobim (1927-94) e Vinicius de Moraes (1913-80). A bossa chegou e foi embora, ficando. Caymmi sobreviveu à bossa, permanecendo sempre na origem.

Percebendo que já havia dado sua contribuição ao revolucionar o imaginário popular com suas canções, fixou o jeito Caymmi de ser —calmo, despreocupado, lento por vocação. Entrou na era do LP regravando seu próprio relicário. Compôs pouco a partir daí, mas quase tudo virou clássico. Quer ver? "Eu Não Tenho Onde Morar" (1960), "Morena do Mar" (1965, lançada por Nara Leão), "Oração de Mãe Menininha" (1972), "Modinha para Gabriela" (1975, lançada por Gal Costa).

Contentou-se por aí e foi só viver a vida, ciente da enormidade de um legado que não era mais só seu, mas de toda a sua gente. Sabia que a partir dele o Brasil já gostava um pouco mais de praias, coqueiros, pescadores, "pretas do acarajé", tatus-bolinha, acalantos africanos e vatapás. Sabia que o Brasil continuava triste, mas aprendeu, também com ele, a sentir um pouco mais de alegria.

Pedro Alexandre Sanches, 35, é repórter e crítico musical da Folha de S.Paulo e autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000).

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