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27/04/2004 - 03h12

De volta à escola

MARCOS DÁVILA
free-lance para a Folha de S.Paulo

No mês passado, Renan Soares, 16, aluno do segundo ano do ensino médio, arregaçou as mangas em um sábado de sol e começou a pintar as arquibancadas e as paredes da quadra de sua escola. "Queria deixá-la com um visual melhor. Pichar a escola é cuspir no prato em que se come", diz o jovem, que conseguiu uma lata de tinta com o diretor da Escola Estadual Prof. Antonio Alves Cruz, em Pinheiros (zona oeste de São Paulo). O adolescente Diego Cícero Silva, 15, que nem estuda na escola, se juntou ao amigo na pintura: "Jogo bola aqui no final de semana. Resolvi ajudar".

Dário de Souza/Folha Imagem
Zyun Masuda, na oficina de velas do Alves Cruz

Esse é só um dos resultados de uma festa junina que reuniu ex-alunos da instituição em 2000. Em junho daquele ano, os formandos de 1972 resolveram tomar uma iniciativa para livrar a escola do fechamento iminente.

"Quando começamos os preparativos para a festa, ouvimos que a escola iria fechar por falta de alunos", recorda o clínico-geral Zyun Masuda, 48, que estudou de 1966 a 1972 no Alves Cruz e resolveu ajudar a escola com os antigos colegas, entre eles o cineasta André Klotzel, o músico Paulo Tatit e o engenheiro Fabio Prati.

Mal sabiam eles que, após dois anos, a iniciativa daria origem à ONG Projeto Fênix - Associação para o Desenvolvimento da Educação e Cultura, que, no final do ano passado, foi uma das dez finalistas do Prêmio Itaú-Unicef Educação & Participação.

"A gente tem muitas dívidas com a escola em que estudou. Foi graças a ela que fiz medicina. Mais do que isso, a escola me tornou brasileiro", afirma Zyun, filho de japoneses. Quando entrou na sala de aula pela primeira vez, só sabia, em português, pedir para ir ao banheiro. "Antes eu achava que educação era obrigação do Estado, mas percebi que, se a sociedade civil não estiver participando ativamente, as coisas não acontecem", afirma o médico.

O primeiro passo do grupo de ex-alunos do Alves Cruz foi marcar uma reunião com alunos, professores, pais e moradores da região para decidir o que fazer pela escola. "A gente não tinha um centavo, mas tinha gente que queria fazer as coisas", afirma Vera Eunice Dal Poggetto, 47 —mãe de um aluno que estudava no colégio na época—, uma das integrantes do Fênix.

"A escola estava morrendo", lembra Márcio Tadeu Lozano, 21, que estudou no Alves Cruz de 1998 a 2000 e participou da primeira reunião promovida pelos ex-alunos. "Antes a gente achava que público representava o que é gerido e de responsabilidade do governo. Agora vemos que público é o que é de todo mundo. Qualquer um pode contribuir", afirma.

O problema maior era a falta de alunos. Para evitar o fechamento da escola por abandono, os estudantes resolveram fazer uma campanha. "A gente até organizou um show", lembra Zyun. Funcionou: a escola, que tinha apenas 470 alunos em 2000, iniciou 2001 com cerca de 1.200 matriculados. Atualmente, estudam lá cerca de 900 crianças e adolescentes.

No final de 2000, surgiu um projeto de reforma da escola coordenado pelo arquiteto José Carlos Ribeiro, 48, ex-integrante do grupo Rumo, que estudou no Alves Cruz de 1969 a 1972. Com a pressão da associação, o governo do Estado liberou a verba e executou as obras. Os jardins da escola também foram recuperados com a ajuda do jardineiro Juvenal Belarmino, um aluno de 40 anos que cursou o ensino médio na época. "Quando o estudante se identifica com o espaço público, ele ajuda a cuidar, percebe que não é só usar", afirma Vera. E esse clima de mutirão permanece na escola hoje.

Não foi só o projeto Fênix que resolveu fazer nascer das cinzas uma escola pública. Economista formado pela USP, o presidente do BankBoston no Brasil, Geraldo Carbone, 47, também pertence a uma geração de alunos que conseguiu construir uma carreira de sucesso tendo como base o ensino público e, agora, não se conforma em deixar a instituição morrer.

"Foi a sociedade que pagou a minha formação. Depois de formado e estabelecido, é importante devolver o que ela me deu. Quero resgatar a qualidade que a escola tinha no passado", afirma Carbone, que estudou de 1967 a 1974 na Escola Estadual Fernão Dias Paes, também em Pinheiros. Em uma entrevista no ano passado, Carbone manifestou seu desejo de ajudar a escola. "Alguns ex-alunos ouviram e me procuraram. Descobri que já havia uma associação", afirma o economista, que resolveu juntar-se a eles.

"Fizemos uma reunião no banco e reencontramos 80 pessoas, gente que não se via desde os anos 70. Foi muito emocionante reencontrar os amigos, mas a idéia era não só fazer festa mas também agrupar pessoas para ajudar a escola", conta Carbone. Dessa reunião já surgiram algumas atitudes isoladas, como propostas de estágio e trabalho para alunos e cursos extracurriculares realizados por professores da USP.

"Ficaria frustrado em só reformar a escola. Não estou preocupado em gerar resultados de curto prazo e dizer: 'Reformei isso', 'Pintei aquilo'. Sei que, quando você volta quatro anos depois, tudo está do mesmo jeito", diz Carbone. Uma das idéias é criar um site de ex-alunos para ter um espaço permanente de comunicação com representantes de todas as turmas que passaram pela escola e, a partir daí, organizar atividades.

A exemplo do Fênix, a associação de ex-alunos do Fernão Dias também está criando uma ONG para ampliar seu poder de ação. Carbone vai além: "Gostaria de criar um modelo que pudesse ser aplicado em outras escolas do país, unindo o poder público e a sociedade por meio dos ex-alunos".

Formada em engenharia eletrônica pela Poli (Escola Politécnica da USP), Sônia Schaf, 47, também estudou no Fernão Dias na década de 70. Hoje, ela encabeça a associação de ex-alunos e continua procurando antigos colegas pela internet. "Já achei mais de cem ex-alunos". Há alguns anos, Sônia recadastrou seu título eleitoral para poder votar na escola em que estudou e ficou incomodada ao ver como ela havia mudado. "Tinha buracos no chão, vidros quebrados, calhas caindo nas quadras e vazamento dentro do ginásio", conta.

"Se a gente, que teve um bom desempenho na vida, não ajudar a escola, quem vai fazer isso?" A pergunta é de Cássio Casseb, 48, presidente do Banco do Brasil, que foi colega de Sônia na Poli e no Fernão Dias. Mais um dos ex-alunos que se juntaram à associação no ano passado, ele está disposto a trabalhar na recuperação da escola. "A idéia não é só apoiar em termos materiais, como reformar banheiros ou pintar, mas promover a inclusão digital dos alunos e remunerar melhor os professores. Gostaria de fazer a escola virar modelo um dia", afirma.

A dona-de-casa Kelly Cristina da Silva, 33, também pôs a mão na massa em sua escola e tem histórias para contar. Em 2001, 16 anos depois de se formar na escola municipal Cidade de Osaka, em Parque São Rafael (zona leste de São Paulo), Kelly resolveu matricular seus dois filhos, Alan, 14, e Amanda, 10, no mesmo lugar. "Com o tempo, fui percebendo os problemas de violência: era aluno batendo em aluno, bomba no banheiro todos os dias. Fiquei incomodada", diz Kelly, que passou a reunir mães de alunos para fazer alguma coisa. "Quase todas as mães tiraram os filhos da escola, mas eu resolvi continuar a lutar", diz ela, que começou organizando uma sala de leitura.

No ano passado, Kelly se tornou presidente da Associação de Pais e Mestres e está orgulhosa de suas pequenas mas valiosas conquistas. Entre elas, conseguiu que fossem abertas turmas dos ensinos fundamental e médio em todos os períodos: manhã, tarde e noite. "Passei nessa escola os melhores momentos da minha infância. Não é porque é público que vai ter atendimento e ensino ruins", afirma.

A secretária municipal da Educação, Maria Aparecida Perez, considera esse tipo de iniciativa de ex-alunos positiva. "Eles incentivam os outros alunos a ter uma outra relação com a escola, porque o que eles fazem não é obrigatório. É um exemplo de que a escola continua aberta para a comunidade."

     

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