Folha Online sinapse  
25/05/2004 - 03h06

Perfil: Por um respiro mais leve

Carolina Chagas
free-lance para a Folha de S.Paulo

Foi no trajeto diário de 6 km entre o bairro do Itaim, onde mora, e a avenida Doutor Arnaldo, onde trabalha, que o patologista Paulo Saldiva, 49, teve a idéia de seu mais recente experimento. No mês passado, do alto da bicicleta que usa para chegar ao trabalho, em meio ao trânsito caótico de um dia de greve de ônibus, o professor Pepino, como é chamado por seus alunos e colegas, decidiu medir a densidade dos poluentes do ar e avaliar a diferença causada pela saída de um elemento das ruas da cidade de São Paulo.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
O médico patologista Paulo Saldiva, no trajeto que realiza diariamente de bicicleta, de sua casa à Faculdade de Medicina

Durante a greve, o filtro instalado na Faculdade de Medicina da USP registrou uma queda significativa na fuligem presente no ar. "Nesses dias, o trânsito piorou, mas a qualidade do ar foi melhor", explica Saldiva. Longe de brigar pelo aumento de carros nas ruas no lugar dos coletivos, o patologista sugere que a pesquisa sirva de estímulo para a instalação de filtros nos escapamentos dos ônibus. "A frota que circula na cidade é coordenada por um grupo de dez ou 12 empresas. Se a legislação exigir o filtro, esse universo é simples de ser controlado", acredita.

Filtros de ar, plantas coloridas e ratos de laboratório são alguns dos elementos que Saldiva usa para avaliar os danos que a poluição do ar causa à saúde do ser humano. Chefe do Departamento de Patologia e dos laboratórios de diagnóstico da FM-USP, ele divide seu tempo entre dar aulas, ajudar nos diagnósticos médicos de pacientes atendidos pelo Hospital das Clínicas e participar de pesquisas da USP e de Harvard, nos EUA, onde é membro do comitê científico da Agência de Proteção à Saúde Ambiental e onde passa pelo menos um mês por ano.

Saldiva entrou no curso de medicina aos 16 anos. A escolha, que pode ter sido influenciada pelo pai pediatra, o levou até as aulas do húngaro Gyorgy Miklos Bohm, 67, com quem teve seu primeiro contato com a pesquisa. Bohm foi quem introduziu no Brasil a investigação dos níveis e efeitos da poluição. "Eu queria ser como ele", lembra. "Acho que ele chegou lá", retribui o mestre, que hoje é vice-diretor do departamento chefiado por Saldiva e também professor titular do Departamento de Patologia da FM-USP.

Raio-X

Nome: Paulo Hilário Nascimento Saldiva
Nascimento: 12 de julho de 1954
Família: casado com Silvia e pai de Lucas, 18, e Leonardo, 16
Formação: médico patologista
Ocupação: professor titular e chefe do Departamento de Patologia e dos laboratórios de diagnóstico da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador do Departamento de Saúde Ambiental da Universidade Harvard (EUA)
Hobbies: tocar gaita, andar de bicicleta e correr

Em 1999, com saudade do tempo em que o trabalho nas mesas de laboratório tomava a maior parte de seu fôlego, Saldiva aceitou o convite para ser professor convidado do Departamento de Saúde Ambiental da Universidade Harvard, nos EUA. "Estava envolvido com muitas tarefas burocráticas e queria ter de novo mais tempo para a pesquisa", lembra.

"Além de inovar em seus experimentos, Saldiva também é muito bom mestre. As equipes coordenadas por ele, muitas vezes compostas por brasileiros que traz para os EUA, também fazem um trabalho acima da média", afirma o professor John Godleski, diretor do Setor de Patologia Pulmonar da Escola de Medicina e do Departamento de Saúde Ambiental da universidade americana. "Ele nos trouxe uma abordagem completamente nova para as pesquisas na área de poluição do ar", completa.

De volta ao Brasil, em 2001, ele assumiu a direção dos laboratórios de diagnóstico da FM-USP, onde luta para levar adiante as pesquisas, mesmo com verbas escassas. "Mas, com o maravilhoso laboratório natural que é a cidade de São Paulo, soluções simples acabam dando resultados surpreendentes", afirma Saldiva, que soube neste mês que o estudo feito por sua equipe durante a última greve de ônibus será publicado pela revista científica "Environmental Research", uma das bíblias do setor.

Saldiva e sua equipe foram os primeiros a demonstrar o efeito da poluição na reprodução humana: "A poluição aumenta o número de abortos", afirma. Do laboratório que Saldiva coordena na USP saíram também números expressivos sobre distúrbios cardiovasculares e de pulmão causados pela poluição atmosférica. "Sabemos hoje que, depois de um dia de alta concentração de poluentes, o número de óbitos por doenças cardiovasculares aumenta de 10% a 12% em relação à média", revela.

Encontrar novos caminhos para medir e reduzir os males provocados pela poluição do ar é o objetivo do patologista. "Nosso foco é o paciente. Queremos melhorar a vida dele no ambiente que escolheu para viver", diz.

Autor de estudos preocupantes sobre o ar da capital paulista ("Hoje temos provas estatísticas de que uma pessoa que vive aqui morre dois anos mais cedo do que alguém que vive em cidades com boa qualidade do ar", afirma), Saldiva acredita que medidas nada complexas poderiam diminuir os danos causados pela poluição. "Temos de investir no controle da emissão de poluentes em carros, ônibus e motos —que, com motores de duas fases, poluem cerca de 20 vezes mais que um carro", alerta ele. "Apesar de representarem gastos maiores, essas medidas resultariam em economias impressionantes nos orçamentos de saúde pública", diz.

Cobrar uma produção de combustíveis para veículos de melhor qualidade é outra alternativa apresentada pelo pesquisador para melhorar a qualidade do ar nas grandes cidades. "O diesel que recebemos em São Paulo já é relativamente melhor do que o enviado para outros pontos do país, mas a qualidade do material é ainda inferior às nossas necessidades", diz.

As soluções simples e eficazes que Saldiva encontrou para medir os níveis de poluição e as associações que ele faz com a saúde do homem vêm ganhando fãs mundo afora. Além de Harvard, ele acaba de aceitar um convite da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) para dar um curso sobre a técnica de biomonitoramento de poluição que desenvolveu. "O experimento é simples, rápido e eficiente: por meio da mudança da coloração de um tipo de vegetação que se adapta a qualquer canteiro central de ruas e avenidas, podemos avaliar o nível de poluição daquela área", explica. Saldiva propõe que as plantas do gênero Tradescantia sejam usadas para ajudar no controle deste problema nas cidades do Leste Europeu.

Por aqui, a técnica já ganhou adeptos. Assessorados por duas alunas de Saldiva, estudantes da rede pública de Cubatão (58 km a sudeste de São Paulo) estão usando as plantas para medir a poluição do ar por lá. Em Santo André e São José dos Campos, as prefeituras também colocaram em prática a idéia do professor. "Instalamos floreiras em seis pontos da cidade", explica a bióloga Eriane Justo Luiz, do Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André, uma das coordenadoras do projeto na cidade.

Em casa, Saldiva se esforça para acompanhar a vida dos filhos. Pai de dois adolescentes, Lucas, 18, e Leonardo, 16, ele tenta diariamente participar da vida em família. "Acordo cedo, tomo café com eles e faço tudo para sair da faculdade em tempo de jantar com a família", conta.

Para ajudar na dinâmica da casa, em 1995 e por quatro anos, ele abandonou a bicicleta e as caminhadas —para chegar ao trabalho, ele alterna entre os pedais e a corrida— e voltou a usar o carro. "Minha mulher, Silvia, estava fazendo doutorado em nutrição, e eu tive de assumir o transporte da família", diz. Apesar de ter "odiado" voltar ao trânsito nervoso da cidade, o professor aproveitou o período para fazer as pazes com a música. No carro, ele descobriu a gaita, instrumento que ainda toca nas horas vagas. "Tinha de arrumar algo para fazer com as mãos", afirma.

Os anos sem exercício físico pesaram na balança. "Engordei 30 quilos", lembra. Assim que a mulher defendeu a tese, em 1999, o professor resolveu voltar para as corridas e para a bicicleta. "De quebra, voltei a dar minha pequena contribuição para a qualidade do ar da cidade", diz.

Apaixonado por São Paulo ("Meu nome é uma homenagem à cidade, nasci no ano do quarto centenário da capital"), o pesquisador também sonha com um transporte público mais estruturado. "Temos de parar de nos defender nos carros. Eles não ajudam em nada a vida do cidadão, muito menos a qualidade do ar da cidade."

     

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