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27/07/2004 - 03h26

O negócio é com você

Heloísa Helvécia
free-lance para a Folha de S.Paulo

Empreender é dom e destino de poucos, na visão do senso comum. Na visão de quem pesquisa o assunto, a capacidade de criar negócios e fazer a economia girar pode —e precisa— ser desenvolvida por mais brasileiros.

Para longe dos heróis que posam sorrindo em revistas de negócios, uma nova compreensão do perfil empreendedor está sendo disseminada no Brasil. Mas ainda predominam os mitos. Um deles é o de que as competências em questão são inatas e raras, o que condenaria a maioria ao desemprego ou, na hipótese boa, ao humor de quem tem tino para negócio.

Outro mito, oposto, é o de que este é um "país de empreendedores". De fato, o Brasil está entre os dez mais na classificação geral, o que não justifica a lenda. Na última medição da pesquisa mundial que investiga o nível da atividade empreendedora em todos os continentes, a GEM (Global Entrepeunership Monitor), o Brasil foi do sétimo para o sexto lugar, com 12,9% da população envolvida em alguma ação empreendedora em 2003. Apesar do bom desempenho, a taxa mostra uma trajetória decrescente desde 2000. Também comprometem a celebração o número irrelevante de registros de patentes e outros indicadores da ínfima inovação presente nas iniciativas brasileiras. A capacidade de "dar nó em pingo d'água" não nos fez empreendedores mais criativos.

Além disso, há o fato de que, tradicionalmente, os países mais pobres apresentam os maiores níveis de comportamento empreendedor (Uganda encabeça o ranking). A luta pela sobrevivência, é claro, impulsiona a abertura de empresas.

Vocação e falta de opção, meio a meio, explicam o quadro dos novos negócios no Brasil. "Metade das empresas são criadas por necessidade, e não por identificação de oportunidades", diz Gabriel Perez, 26, gerente do Instituto Empreender Endeavor, ONG que se dedica à cultura empreendedora. Segundo ele, empresas filhas da necessidade não alavancam a economia: "Só apoiamos quem tem potencial de crescimento e de geração de empregos", diz Perez, encarregado de selecionar gente que descobriu um nicho de mercado inexplorado, ou uma tecnologia, ou um novo modelo de negócio.

Para esses, a ONG monta programas personalizados de suporte. Os novos empreendedores contam com a consultoria voluntária de presidentes de empresas e especialistas, que doam horas da agenda para transmitir suas experiências. "Fazem isso por filantropia, para mudar o Brasil, mas também entram em contato com novas idéias, aprendem e se oxigenam", diz o caça-talentos da Endeavor. A ONG, com sede em Nova York e há quatro anos no Brasil, organiza workshops gratuitos e cursos virtuais, em programas abertos de formação.

A falta de educação adequada é o grande obstáculo ao desenvolvimento do empreendedorismo inovador no país, segundo a mesma pesquisa GEM —iniciativa do Babson College, de Massachusetts (EUA), e da London Business School (Reino Unido).

"O ensino universitário brasileiro se mantém prisioneiro de um modelo superado, voltado fortemente à formação de empregados para os setores público e privado", diz Marcos Mueller Schlemm, 54, coordenador da pesquisa no Brasil. No diagnóstico dele, o aluno brasileiro é tratado como recipiente de informações, e não como ator no processo de construção do conhecimento. "As escolas formam agentes passivos", critica.

Schlemm acha que o Brasil teria mais empreendedores se a criança, já no ensino básico, fosse estimulada a perceber o mundo a sua volta como fruto da ação do homem, podendo ser transformado. "Quando a abordagem pedagógica for outra, teremos mais gente com o impulso de ir buscar recursos para realizar seus sonhos, em vez de ficar só sonhando", diz o pesquisador, também professor da PUC-PR, onde ensina "inovação e empreendedorismo" na pós-graduação.

Para o professor, características do empresário bem-sucedido —como intuição e facilidade de lidar com o risco— podem ser desenvolvidas. "Muitas das habilidades vistas como inatas têm raiz na educação. Quem vai lidar melhor com risco? A pessoa estimulada a nadar desde criança ou aquela orientada a nem chegar perto da água?", exemplifica.

Discutir se a capacidade de idealizar e materializar uma empresa está ou não no DNA é menos produtivo que ensinar a empreender e despertar talentos latentes, concorda o consultor Eder Luiz Bolson, 53, autor de "Tchau, Patrão" (Senac): "A redução na oferta de empregos formais é irreversível, e é preciso que todos se preparem para o auto-emprego", diz ele, que também dá curso de empreendedorismo na Universidade Federal de Pelotas (RS).

Nos últimos anos, surgiram esforços para estimular a iniciativa nos jovens e ensiná-los a estruturar um negócio. "Há cerca de 350 cursos desse tipo no Brasil, mas a maioria prima apenas pela técnica, quando a questão é atitude", diz Perez, da Endeavor.

É claro que não se replica o espírito de um Bill Gates apelando para a o planejamento estratégico e a gestão do caixa —embora esse aprendizado seja fundamental, já que ninguém vai longe numa atividade solo sem dominar instrumentos gerenciais, como mostra a alta taxa de mortalidade das microempresas (leia texto na página ao lado).

Mas a construção da visão empreendedora dependeria de um trabalho mais psicológico, capaz de aguçar a percepção e fazer o indivíduo se confrontar com suas crenças, para revê-las e ir buscar, na sua história, a razão de seus limites: "Poucos cursos exploram essa linha mais profunda", diz Schlemm.

"Empreender" é um programa de sete meses que o Senac criou para jovens de baixa renda. Nele, além de desenhar um negócio, os alunos elaboram um plano de desenvolvimento pessoal no qual identificam suas forças e fraquezas e montam estratégias para trabalhar pontos fracos. O foco é "vivencial", afirma Carlos Alberto Lopes, 40, gerente da unidade de terceiro setor do Senac.

"O mercado tem uma percepção estereotipada do empreendedor", diz Lopes. "Não é só o empresário que ficou rico. É a pessoa capaz de analisar um cenário, fazer um plano e agir, seja para montar um negócio, seja na área pessoal ou social. A postura empreendedora está nos que nunca estão na mídia, mas que percebem os problemas das suas comunidades e atuam em relação a isso", afirma.

O Senac, como outras instituições de ensino superior, mantém empresas juniores em alguns cursos e fomenta iniciativas alinhadas à economia solidária, como cooperativas. Há seis meses, criou também um núcleo de empreendedorismo. "Chega de formar elaboradores

de currículo. Todos podem ser educados para buscar seus próprios resultados, responder às próprias perguntas e farejar oportunidades", diz Juliano Seabra, 26, gestor do novo núcleo.

Segundo Seabra, professores dos diferentes cursos usam técnicas para tornar o ambiente favorável ao aparecimento de novas idéias e também são estimulados a criar. O Senac é uma das 30 empresas com maior grau de empreendedorismo corporativo do país, no ranking criado pelo Ibie (Instituto Brasileiro de Intra-Empreendedorismo).

O termo intra-empreendorismo foi criado em 1978 pelo norte-americano Gifford Pinchot. Refere-se à capacidade de funcionários de agir como donos da empresa, inventando novos negócios ou processos dentro de uma atividade já estabelecida. Comportamento empreendedor, então, não é exclusividade de proprietários: é um impulso pró-ação e contra a acomodação, que pode transformar tanto uma corporação como um casamento. Mas não costuma ser incentivado dentro de organizações grandes e burocratizadas.

"A maioria das grandes empresas tem dificuldade para identificar formas mais ágeis de se desenvolver", diz Pedro Fortes, 45, diretor da Eastman do Brasil, multinacional que apóia projetos econômicos inovadores, em parceria com ONGs, universidades e instituições como o Sebrae. "Nosso modelo é crescer ajudando outros a crescerem, o que renova a energia dentro da empresa."

Para isso, a Eastman montou uma infra-estrutura de apoio a pequenos empresários ligados às áreas de seu interesse: agrobusiness, alimentos, química, novos materiais, biotecnologia e energia. Por meio do "Innovation Center", dá ao empreendedor um suporte que inclui acesso a capital, tecnologia e novos mercados. "Nós avaliamos o estágio das idéias e auxiliamos os que querem expandir e diversificar. Tem muita gente competente que não sabe como crescer, e nós podemos ajudar", afirma Fortes.

Ainda mais otimista em relação a novos empreendimentos no Brasil é o consultor Ricardo Neves, 48, autor de "Copo Pela Metade" (Negócio Editora). Ex-consultor da ONU para desenvolvimento, ele vê a falta de empregos como chance de redefinição do vínculo de trabalho na sociedade. "A humanidade vai sendo liberada dos empregos insalubres e aborrecidos."

Neves diz que cada vez mais jovens estão trocando a busca de estabilidade pela liberdade de fazer a própria agenda, apesar de a "ideologia do emprego" ainda dominar o país. Na análise desse consultor, estão com os dias contados a "sociedade dos canudos, a cultura avessa ao risco e os preconceitos" de uma antiga e restrita "classe média" que ainda vê o pequeno negócio como coisa sem charme, própria de imigrantes, não de doutores. "Esta é a primeira geração brasileira que está sendo levada ao empreendimento: as incubadoras de empresas são novidades dos anos 90, os cursos de MBA idem. E agora começa a aparecer o capital de risco no país", diz Neves.

Para quem ainda não notou, ele avisa que o emprego da vida toda acabou, até mesmo o público: "O Estado em breve terá de passar por reengenharia, como aconteceu no setor privado. Quanto mais cedo a pessoa aprender a viver sem garantias, melhor".

Se ocupações como a de cobrador de ônibus desaparecem, outras melhores vão surgir, crê: "A maioria das profissões que serão correntes em 2020 ainda nem foi inventada, e isso não deve ser visto do ponto de vista do medo. É hora de cada um criar aquilo que o remunere existencialmente, que dê significado à vida. Não é mais a sobrevivência, é a essência. Essa é a primeira parte da atitude empreendedora".

O entusiasmo não é consenso. Autor do livro "Terceiro Setor e Questão Social" (Cortez Editora), Carlos Eduardo Montaño, 41, opina: "Esse discurso inocenta a dinâmica do capital na geração do desemprego e leva as pessoas a buscar soluções individuais e pontuais, cada uma pensando no seu problema e deixando de lado questões como direitos trabalhistas e sociais. Não se discute a macroeconomia".

Uruguaio, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, Montaño escreveu a crítica mais contundente ao padrão emergente de intervenção social no Brasil —leia-se ONGs. No seu modo de ver, a onda pró-empreendorismo tem a função de tornar mais aceitável a atual reestruturação produtiva e encobrir as responsabilidades pelas seqüelas desse processo: "É a satanização do Estado e a santificação da sociedade civil, como se ela estivesse sempre a serviço da cidadania e dela não participassem diferentes atores, de neofascistas a revolucionários, com diferentes interesses".

Ele faz uma ressalva: "Não significa que eu desconheça os aspectos positivos e a importância relativa de pequenas empresas, incubadoras de negócios, cooperativas e ONGs diante do aumento do desemprego e do subemprego. Mas esses mecanismos pulverizam a sociedade civil, separam os trabalhadores".

Já o professor Schlemm, da PUC-PR, identifica nessa análise uma "visão estatista": "Procuro manter distância crítica tanto do neoliberalismo como dessa óptica que vê o Estado como único provedor de emprego e renda. Essa visão trouxe acomodação e desperdiçou vidas. Prefiro ensinar meu filho a se defender a fazê-lo esperar por um protetor que não tem cumprido o seu papel".

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