Folha Online sinapse  
27/07/2004 - 03h50

Caminho das Pedras: O poeta comunista

Laura Hosiasson
especial para a Folha de S.Paulo

Homem de sete instrumentos, consagrado com o Nobel de Literatura em 1971, Pablo Neruda teve também carreira marcante como diplomata e como senador, chegando a se candidatar à presidência do Chile pelo Partido Comunista, em 1969, de que desistiu em favor da candidatura de Allende.

Como poeta, debruçou-se no desvendamento lírico das relações entre a sensualidade da matéria e a riqueza do espírito, entre o prosaico da vida cotidiana e o sublime. Sua extensa produção, de mais de quarenta obras, pode parecer desigual, no conjunto, mas nela se encontram alguns momentos da mais alta qualidade poética, em que a realidade, "gasta como um ácido pelos deveres da mão, penetrada pelo suor e pela fumaça, cheirando a urina e a açucena", se faz poesia.

A massa dessa produção, pela heterogeneidade dos temas, dos personagens díspares de sua existência real e imaginária, das inúmeras viagens, pelas paixões e pela febre criativa, constitui uma peça importantíssima da história da poesia latino-americana e caracteriza um modo de expressão peculiar, um estilo nerudiano.

Nasceu no sul do Chile, na cidadezinha de Parral, em 12 de julho de 1904. Escreveu desde pequeno, sentindo-se destinado à poesia: "Nunca tive dúvidas... Desde que li o primeiro poema. A partir de minha adolescência sempre quis escrever".

O menino magro, de saúde frágil, olhudo e tímido desenvolveu-se amargo e triste até um determinado ponto, quando então a obra e a vida tomaram rumos diferentes: mais sonoros e otimistas. Em sua primeira fase, publica o "Crepusculário" (1923), de traços decadentistas, e os famosíssimos "Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada" (1924), cuja atmosfera melancólica parece culminar na sua estada como cônsul na Birmânia, onde ele confessou ter se defrontado com o impulso do suicídio.

Foi sua "temporada no inferno, a mais solitária de minha vida", comentará nas "Memórias" (1962). O jovem poeta sentia-se longe de sua língua, vítima do esquecimento, num ostracismo insuportável. Nesse desterro, nasceram vários dos poemas que iriam compor seu livro mais enigmático e surreal, "Residência na Terra", publicado em 1935, já em Madri.

A experiência da Guerra Civil espanhola impulsionará seu crescente engajamento político, penetrando a fundo em sua criação poética: "Espanha no Coração" (1938).

Após criticar publicamente o governo de González Videla, no Chile, Neruda, em 1949, foge pelos Andes com os manuscritos do "Canto Geral", que só terminaria durante essa difícil jornada, em 1950. "O Canto", empreendimento poético de grande envergadura, constitui outra fase do poeta. Neruda tinha se transformado num homem guloso, bem fornido, festeiro, amante contumaz, viajante, cidadão do mundo.

As visitas a Machu Picchu e a Wilcamayo irão expandir o sentimento latino-americano que o livro todo parece respirar. Ao longo de seus mais de 15 mil versos, desfilam cinco séculos e meio da história latino-americana: as origens do continente, monólogos dramáticos, crônicas contemporâneas de perseguição política, greves sindicais, cartas a poetas amigos. Tudo isso configura uma história marginal da América.

Neruda volta do exílio em 1952, com novos amores, cheio de poesia e confiante numa nova história para o Chile, onde é acolhido como o grande poeta público nacional. Assentado em Isla Negra, no litoral, inicia viagens a todos os cantos do país. Suas "Odes Elementares", de 1954, são fruto dessa experiência de contato e de reconhecimento minucioso e íntimo das diversas paisagens nacionais, mas também de sua profunda empatia com o mundo "elementar", telúrico e prosaico, que o rodeia.

Virão mais tarde ainda muitos livros de prosa e de lírica, junto com a consagração internacional. Com sua morte, em 1973, meses após o golpe militar, apagava-se uma era poética com raízes no versículo de Walt Whitman e numa tradição centrada não nos rigores da condensação e da síntese, mas numa arte do excesso e da exuberância verbal.

Laura Hosiasson é professora de literatura hispano-americana no Departamento de Letras Modernas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Leia mais
  • 10 passos para conhecer Neruda

  •      

    Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).