Folha Online sinapse  
31/08/2004 - 03h30

Leia trecho de "Todo DJ Já Sambou"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo trecho de "Todo DJ Já Sambou" (Conrad, 260 págs., R$ 25, site), de Claudia Assef. O livro é indicado no teste "Música eletrônica é bate-estaca?", publicado no Sinapse de 31 de agosto de 2004.

A-há, U-hu, o Drum'n'Bass É Nosso!

Esse samba é meu groove da vez
Com guitarra e drum'n'bass
Só pra ver como é que fica
Eletrônico o couro da cuíca.

- Fernanda Porto em "Sambassim" (letra de Alba Carvalho)

Fui me enfiando na Movement, uma das tendas mais cheias do Homelands de 2002, até que consegui chegar bem perto do palquinho armado para os DJs. A tardinha começava a cair no enorme vale onde acontece o festival, a poucos quilômetros de Winchester, cidade distante uma hora de Londres, de trem. Patife tinha acabado de começar seu set, o que coincidiu com um repentino entupimento humano na arena.

Debrucei-me na grade de segurança que separa a galera do DJ. Fiquei ali um tempinho me ajeitando, procurando uma posição decente para fotografar. Quando comecei a disparar, os flashes chamaram a atenção de Patife, que olhou na minha direção e me reconheceu. O DJ abriu um sorrisão e mandou beijinhos.

Ao meu lado, uma inglesa loirinha me olhou estarrecida.

— Do you, like, know Pachief? — é assim que os gringos pronunciam.

— Claro, ele é meu amigo.

— Sério? Eu amo esse cara, vou sempre na [festa] Movement, já fui pra Bristol atrás dele. Você é amiga dele? Então, are you, like, brazilian? Sério que naquela hora já tinha entendido tudo: não é que a menina era uma groupie do Patife, uma verdadeira maria pick-up setorizada em DJs brasileiros? Só de sacanagem respondi assim:

— Brasileira? Não só sou brasileira, como sou de São Paulo e também sou amiga do Marky.

— Aaaaaaaaaahhhhhhhhhhh, você é, tipo, demais.

— Tipo, sou? Obrigada, agora me dá licença que eu vou ali no backstage.

Eu já era praticamente uma celebridade, pelo menos para cerca de vinte ou trinta meninas e meninos ingleses que me olhavam como se eu fosse a própria reencarnação clubber da Carmen Miranda. Gente, não é que ser DJ brasileiro é hype?

Megafestival importantíssimo (apesar de já perder em tamanho de público para o brasileiro Skol Beats), Homelands reuniu em 2002 os nomes mais importantes da cena eletrônica mundial. Entre as dezenas de atrações estreladas, do naipe de Carl Cox, Basement Jaxx, Richie Hawtin, Jeff Mills, X-Press 2, Erick Morillo, Laurent Garnier e até o retorno do Soft Cell aos palcos, estavam três DJs brasileiros: Patife e Marky — os primeiros a mostrar internacionalmente o som de pista produzido no Brasil — e o mineiro Anderson Noise, representante do tecno verde-amarelo.

Pouco tempo depois do festival, explodiu na Inglaterra a música "LK", parceria de Marky com o produtor e DJ Xerxes de Oliveira, o XRS (espécie de Giorgio Moroder do cenário d'n'b paulistano). Em seguida, "LK" estourou nos Estados Unidos e em vários países da Europa. A faixa, que usa sample de "Carolina Carol Bela" — música de 1969 da dupla Jorge Ben e Toquinho — com vocais do inglês MC Stamina, tornou-se obrigatória para qualquer DJ de drum'n'bass. Em novembro de 2002, "LK" alcançou o oitavo lugar na parada britânica de singles de dance music e se tornou carro-chefe do V Recordings, o mais sólido selo de drum'n'bass do Reino Unido. No ranking geral de vendas, o disco chegou ao 17o lugar, colocação mais importante que um artista brasileiro já alcançou até hoje. A última aparição de um brasileiro na parada britânica havia ocorrido em 1996, quando o Sepultura chegou à 19ª posição com a música "Roots Bloody Roots".

E sabe que artistas brasileiros foram convidados para tocar na abertura da Copa do Mundo de 2002? Ponto para quem disse Marky e Patife. Os dois tocaram em Tóquio, na festa oficial de abertura da Copa, mostrando que o drum'n'bass brasileiro é pé-quente. (Afinal de contas, "Festa", da Ivete Sangalo, se valeu da mídia ao longo do campeonato inteiro para virar "hino" da conquista.)

Assim, meio sorrateiramente, a música eletrônica brasileira começou a se impor no cenário mundial. É verdade que o movimento de "brasileirização" das batidas eletrônicas começou quando DJs e produtores ingleses e japoneses apresentaram discos de MPB (Marcos Valle, Joyce, Jorge Ben Jor) às pistas, em meados dos anos 90. Mas a consagração do DJ brasileiro só viria neste começo de século XXI, com o sucesso de Marky e Patife (nas pick-ups) e Xerxes (na produção), na Inglaterra.

"É justo falar que o Marky, o Patife e o Xerxes mudaram os rumos do drum'n'bass mundial. Não fosse a ida deles para a Europa, ninguém ia achar que a música eletrônica brasileira se transformaria num produto sério, de exportação", derrete-se em elogios Renato Cohen, DJ paulistano que em 2002 lançou o single Pontapé, pelo Intec, selo dos superDJs Carl Cox e C-1, tido como um dos mais importantes provedores de tecno para o mundo. Foi a primeira vez que uma faixa de tecno produzida no Brasil ganhou lançamento num selo dessa importância.

Mau Mau, DJ de tecno que em 2002 engatou uma quinta na carreira internacional, também enxerga o drum'n'bass nacional como precursor. "A ida do Marky e do Patife para a Europa abriu muitas portas. Se hoje estão vendo que nem só de d'n'b vive o Brasil, foi graças a eles", diz. O DJ mineiro Anderson Noise, que em 2002 tocou em clubes e festivais importantíssimos da Europa, concorda: "A gente está numa época muito feliz para a música eletrônica no Brasil, e devemos tudo ao drum'n'bass, principalmente à Glória Maria" (um dos muitos apelidos com que Noise se refere a Marky). Apostando no sucesso do tecno brasileiro mundo afora, o DJ acertou o lançamento de seu segundo CD, Noise Music Compilation, na Inglaterra, Alemanha, França e Japão.

Nascidos e criados na periferia de São Paulo, em famílias de classe média-baixa, Marky e Patife não foram parar na Europa por esforços de algum caça-talentos gringo, infiltrado nas festas brasileiras. Com uma cara-de-pau tremenda e uma autoconfiança de causar inveja, os meninos compraram duas passagens de avião para Londres. Marky usou as economias da mãe, e Patife parcelou o bilhete em oito vezes no cartão de crédito de um amigo, o também DJ Ricardo Coppini.

Sem falar uma palavra em inglês, a dupla pegou um vôo Vasp em São Paulo com destino a Bruxelas (porque era mais barato) e, dois dias depois, desembarcou em Londres. Queriam ver de perto a cena drum'n'bass inglesa. O ano era 1997. E o resto da história? Você fica sabendo mais adiante no livro. Agora, como fazem os DJs de d'n'b, a gente engata um rewind e dá um pulo até a pré-história do DJ brasileiro.

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