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31/08/2004 - 03h48

Perfil: A diretora da escola sem paredes

Alexandra Ozorio de Almeida
free-lance para a Folha de S.Paulo

Durante todo o dia, e noite adentro, quem passar na frente do colégio municipal Amorim Lima verá um carro mal estacionado com o adesivo "Motorista amaciando". Por sorte, a dificuldade de Ana Elisa Siqueira em conduzir máquinas é inversamente proporcional a sua capacidade de dirigir uma escola.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Ana Elisa Siqueira, na sala de leitura do colégio Amorim Lima
A Emef Desembargador Amorim Lima vem causando alvoroço na rede pública paulistana. Em fevereiro, foi dada a partida a um ousado projeto piloto: implementar uma metodologia de ensino inspirada no trabalho desenvolvido pela Escola da Ponte, de Portugal (leia mais).

O resultado: capoeira, teatro e educação ambiental entraram na grade curricular, paredes foram derrubadas e alunos passaram a decidir com professores seus objetivos de aprendizagem e as formas de avaliação empregadas.

"Antes, acreditava que só a revolução resolveria, mas hoje em dia penso que, com boas escolas, a gente já consegue fazer uma revolução. Realizar um bom trabalho no Amorim faz diferença", acredita a pedagoga.

De uma família de advogados e políticos, Ana nasceu há 40 anos em São Paulo e estudou no tradicional Colégio Sion. Depois de cursar pedagogia na PUC-SP, fez a prova para se tornar professora municipal. Formada em instituições particulares, sempre trabalhou em escolas públicas. "É uma questão política: preciso estar onde está a maioria. A perspectiva no espaço público é muito maior, e essa foi a minha opção desde sempre. Não é só trabalho, é ideal de vida."

A militância tem seu preço: as jornadas de trabalho, que freqüentemente passam de 12 horas, levam o marido a reclamar que ela se casou com a escola. Ana é casada com o arquiteto e artista plástico Will Alves, 53, com quem tem um filho de quatro anos, Pedro Generoso.

Formado pela FAU-USP, Will tem um currículo que não faz feio ao lado do da diretora. "Ele criava esculturas de madeira, mas não gostava do sistema de marchand. Will criou o primeiro pente de madeira brasileiro, que chegou a ser exportado para a Europa", conta a mulher coruja.

A concorrência chinesa derrubou o preço de seu trabalho artesanal, e hoje Will cria tinas de ofurô, caixinhas de segredo e outros objetos de madeira em seu ateliê na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo. "Mas ele é supercompreensivo, um excelente ouvido, e reconhece que meu trabalho é muito importante", diz ela.

"Com todos os problemas que a escola pública tem, é preciso viver aqui para que fique um pouco melhor", completa.

Raio-X

Nome: Ana Elisa Siqueira
Idade: 40 anos
Família: casada com Will Alves, 53, e mãe de Pedro Generoso
Formação: pedagoga pela PUC-SP, cursou também dois anos de filosofia na mesma faculdade
Ocupação: diretora de escola municipal
Hobbies: culinária e cerâmica

Ana soma 20 anos na rede municipal. Depois de dar aula para crianças de primeira a quarta série e ser professora de pré-escola, decidiu prestar concurso para coordenadora pedagógica. Foi nesse cargo que percebeu a inclinação para o cargo de diretora. "Queria mais, tinha vontade de discutir uma proposta de educação e dar minha cara ao projeto", explica, mastigando um cravo do pote que perfuma sua sala no Amorim.

Ao decidir mudar de função, escolheu a dedo a escola que dirige há sete anos. "A escola tem uma clientela variada, de pais analfabetos a universitários, o que possibilita trabalhar com uma ampla diversidade de pessoas e culturas", afirma. Ana viu no grupo de pais e alunos um "germe de participação" que gradualmente aumentou em quantidade e qualidade. "É uma comunidade muito parceira", elogia a diretora.

As mudanças no Amorim Lima começaram com diversos trabalhos de formação, financiados pelo MEC, dos quais participavam desde funcionários de limpeza até a diretora. Outros trabalhos incluíram parcerias com instituições como Vereda (que segue a proposta do educador Paulo Freire), Instituto Pichon-Rivière e Praxis. "Essa formação foi essencial para darmos um norte ao nosso trabalho", afirma.

Em outro fronte, a escassez de funcionários levou algumas mães à escola nos recreios, para cuidar das crianças. Elas começaram a organizar brincadeiras com alunos de primeiro e segundo ano, e, em 1998, nasceu o projeto Oficina de Cultura Brasileira.

Nessas oficinas, alunos de todas as séries podem ficar na escola para aulas de capoeira, dança brasileira, música e educação ambiental, entre outras atividades. As oficinas foram o embrião da revolução implementada neste ano —tratada por todos como "o projeto". "Trabalhar com as tradições brasileiras oferece a oportunidade de lidar com a diversidade também no trabalho de cultura. Traz conflitos, traz vida. Nos dá a oportunidade de falar dessas questões", diz a diretora.

Com o aval e o financiamento da Secretaria Municipal de Educação, foi dada a largada em outubro de 2003. "Decidimos apoiar o projeto porque vimos que era muito consistente e que pais e professores estavam convictos", conta a secretária municipal de Educação, Maria Aparecida Perez.

"Afinal, o sucesso depende do envolvimento deles: é uma proposta na qual todos participam da construção e da solução dos problemas. E foi a escola que pediu o projeto, em nenhum momento foi algo imposto", acrescenta.

Implementado no primeiro semestre deste ano, o projeto piloto cobre o primeiro e o quinto ano do ensino fundamental. A turma do primeiro ano conta com dois professores "gerais", e o trabalho é pautado na leitura, na escrita e nas "contas". "Especialização antes da oitava série é absurdo. O ensino deve ser integrado", defende Ana. No quinto ano, em vez de um professor de história e outro de português, por exemplo, existem três professores que trabalham com todas as áreas do conhecimento e estão sempre juntos em sala de aula.

O pressuposto do projeto é a busca de aprendizado pessoal dentro de um processo e de um espaço coletivos. Para concretizar a teoria, o primeiro passo foi derrubar as paredes entre as classes. "Dentro desse espírito, os professores também precisavam ficar juntos, para compartilhar experiências e poder discuti-las", explica a diretora.

O segundo passo foi inserir oficinas —de inglês, arte, educação física, teatro, capoeira, leitura, informática e educação ambiental— na grade curricular. Cada uma dessas duas séries piloto, com 105 alunos, foi dividida em 21 grupos de 5 estudantes, que revezam as atividades entre a classe e as oficinas.

Em geral, ficam 25 alunos na sala de aula. "Isso elimina um dos problemas crônicos da escola pública: aulas vagas devido a professores que faltam. Mesmo com dois ausentes, um dá conta de uma sala com 25 pessoas", diz Ana.

Os alunos sempre trabalham coletivamente em atividades pessoais —podem pedir ajuda aos colegas e compartilham oficinas, mas as tarefas são individuais. Eles trabalham por objetivos, dentro das áreas propostas pelos professores. Uma vez por semana, há a tutoria, quando a ficha de organização semanal de cada aluno é discutida, e o progresso da semana, analisado.

Ainda recém-nascido, o projeto já apresenta aspectos positivos. Um deles é que a presença simultânea de vários educadores ameniza conflitos entre aluno e professor, pois a terceira pessoa faz um contraponto. "Trabalhar em grupo é muito difícil, mas já vemos bastante avanço", diz Ana.

Tudo o que é novo causa um certo desconforto, mas Ana tem na ponta da língua a resposta aos críticos. "A escola está totalmente de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases. Nosso projeto respeita a proposta dos ciclos, a importância do tempo de cada aluno, a busca pela avaliação constante por objetivo", enumera. Outra crítica que costuma ouvir é que, caso o modelo fosse adotado por toda a rede, haveria uma redução nas vagas para professores por disciplina.

"Não diria que temos recebido críticas", ameniza a secretária de educação. "A questão é que as pessoas estranham muito: pais, professores, as pessoas ficam receosas." Maria Aparecida Perez acrescenta que outras escolas da rede estão interessadas no projeto e vêm observando-o e discutindo idéias. "Cada escola deve pensar o seu projeto, adaptá-lo para a sua realidade", ressalta.

Aos que pedem resultados concretos, Ana responde que é difícil medir felicidade e integração. "Não é um trabalho quantitativo. Vejo alunos, professores, uma escola inteira mudando de atitude. Sei que alguns professores reclamam que, comigo, precisam 'rezar pela cartilha'. Mas também sei que é o preço a ser pago por ter um projeto", afirma.

A meta do Amorim para 2005 é ainda mais ambiciosa: expandir o projeto para todas as séries. "Vimos que não dá para ter duas escolas em funcionamento ao mesmo tempo. Ou é para todos, ou não é para ninguém."

O entusiasmo contagiante da diretora é um pré-requisito importante para o rali profissional que escolheu. "Para trabalhar com a coisa pública, é preciso acreditar. Eu acredito que a gente faz a diferença, e é essa força que me motiva todos os dias", diz.

Ana desconfia que a sua perseverança tenha sido moldada na piscina. Ela foi nadadora de fundo, competindo nas provas de 400 m e 800 m, além de praticar travessia de mar. "Na natação, é preciso ter força para continuar, saber que não é tão fácil. E perseverança é fundamental no trabalho em educação. O resultado não aparece quase nunca."

No seu pouco tempo livre, Ana corre para as panelas. "Sou uma supercozinheira", conta, sem modéstia. Ela aprendeu a cozinhar quando se casou, há 15 anos, e prepara jantares completos diariamente. "A exceção é a sobremesa, que preparo uma vez por semana e precisa durar", confessa.

O fato de estar virando sua escola de ponta-cabeça não parece preocupá-la. Ana reconhece não ter todas as respostas e acha isso bom. "O inusitado tem de estar presente. É preciso estar o tempo todo aprendendo, mas a formação só tem sentido quando exigida pela prática."

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