Folha Online sinapse  
28/09/2004 - 03h12

Uma vida pelos livros

Paulo de Camargo
free-lance para a Folha de S.Paulo

Aos 82 anos, a pesquisadora e crítica literária Nelly Novaes Coelho, professora da pós-graduação em literatura portuguesa da Universidade de São Paulo, acaba de receber uma notícia que lhe soou como música: seus netos se comprometeram em criar uma fundação para abrigar um de seus maiores tesouros, sua biblioteca particular. Trata-se de uma coleção de 10 mil livros, que foram sendo garimpados ao longo de cinco décadas de estudos nas áreas de literatura brasileira, portuguesa e infanto-juvenil.

Fabiana Beltramin/Folha Imagem
A pesquisadora Nelly Novaes Coelho, que terá uma fundação para guardar seus livros

"Fiquei muito feliz, pois temia pelo futuro de minha biblioteca", diz Nelly, que tem o roteiro de quase dez livros que ainda pretende escrever e cerca de 800 páginas inéditas. Para ela, o principal valor do acervo é o fato de ser formado por obras seletas, lidas e anotadas. Rotineiramente, Nelly doa a bibliotecas públicas os livros que não foram lidos. "Nunca uso internet, pois tenho tudo à mão nos originais, que são meu material de trabalho", orgulha-se.

Parte da coleção, formada por obras de autores portugueses do século 20, já tem destino certo: será doada à Universidade de São Paulo. Entre eles, estão tesouros como exemplares de primeira edição com dedicatória de autores como Vergílio Ferreira (1916-1996) e Branquinho da Fonseca (1905-1974), que tiveram tiragem inicial de apenas 200 volumes. Nelly tem também guardada a correspondência que manteve com diversos escritores, como Clarice Lispector e Murilo Rubião.

A história do acervo de Nelly é, sobretudo, uma história de amor pelos livros. Ela lembra-se perfeitamente da primeira biblioteca que viu, aos sete anos, na casa de um juiz. "Foi como se eu estivesse entrando em um templo." Ela conta que bibliotecas eram raras na época. "As pessoas guardavam livros em gavetas."

Prima da pianista Guiomar Novaes, Nelly também foi educada para a música, mas não seguiu carreira. Quando conseguiu uma bolsa de estudos na Itália, eclodiu a Segunda Guerra Mundial. Ficou tão traumatizada que, por muitos anos, nem sequer podia ouvir piano.

Dedicou-se à literatura quando iniciou seus estudos na USP, na década de 50. Lá descobriu ter sido aluna de Mario de Andrade, a quem conhecia apenas como músico e musicólogo.

Nelly progrediu rapidamente na universidade, pois já tinha um vasto conhecimento dos clássicos, que lera na juventude. "Sem saber, já tinha passado pelos principais autores dos séculos passados", diz.

Depois de ter feito a livre-docência na área de literatura portuguesa e brasileira, a pesquisadora descobriu, na década de 70, uma outra vertente —a produção infanto-juvenil, que se anunciava pelas mãos de escritores como Ruth Rocha.

A professora esforçou-se para que esse gênero deixasse de ser uma espécie de prima pobre da literatura na universidade e conseguiu, na década de 80, montar um curso de quatro semestres na USP que, segundo conta, foi aprovado "na base da piada". Por isso, a biblioteca de Nelly também é um registro vivo da afirmação da literatura infanto-juvenil brasileira.

Com a futura fundação, a professora espera registrar a literatura não apenas como objeto de estudo mas, principalmente, "como uma forma de levar as pessoas a se conhecer melhor e a entender o que se passa no mundo".

Leia mais
  • Para construir leitores
  • Na infância, menos TV e mais livros
  • 70 anos de paixão
  • Enquete: "Ler é:"

  •      

    Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).