Folha Online sinapse  
30/11/2004 - 02h44

Leia prefácio de "Uma História Não Contada"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo o prefácio de "Uma História Não Contada - Negro, Racismo e Branqueamento em São Paulo" (Senac São Paulo, 400 págs., R$ 60), de Petrônio Domingues, livro indicado na seção "Leituras Cruzadas" no Sinapse de 30 de novembro de 2004.

Prefácio

O livro que você agora irá ler foi o resultado de alguns anos de trabalho de Petrônio Domingues. Sua primeira preocupação, quando ele me procurou para que eu, na condição de orientador, lhe ajudasse a encaminhar o projeto, era deslindar o que chamava "o mito da malandragem", que, como se sabe, pendia ou pende sobre a figura do negro como entidade social da Primeira República. Petrônio preocupava-se com a assertiva, quase sempre corrente nos meios de comunicação da época, que apresentava o negro como malandro e não raro vagabundo. Como semelhante imagem teria sido criada? Como seria possível aprofundar a compreensão acerca do papel do negro na fase posterior à abolição?

Manifestei então a Petrônio que seu tema envolvia aspectos culturais cujas fontes não estão ainda bem caracterizadas e estimulei-o a tratar o tema com aspecto mais histórico-econômico, com fontes mais precisas, capazes de serem manipuladas no prazo de uma dissertação de mestrado. Devo dizer-lhe, caro leitor, que Petrônio não é facilmente convencível. Por detrás do seu sorriso maneiro ele consegue entrincheirar-se, evoluir no terreno e oferecer uma guerra de resistência implacável ao mais atento dos orientadores. Assim, sofremos ele e eu inúmeros percalços, emboscadas, atalaias e azurrapes mútuos. Eu a arrastá-lo para as fontes disponíveis; ele a afastar-se rumo ao seu desejo original.

Por fim, resultaram as páginas que vão ler e que são uma interessante visão sobre aspectos da história econômica da Primeira República. Um debruçar-se sobre a varanda do tempo e, de não muita distância, observar as particularidades criadas pela crescente onda de imigrantes da chamada "nova imigração", ou seja, a enorme pressão demográfica, no processo de formação do mercado de trabalho, desencadeada pelos interesses dos grandes proprietários.

O colapso da escravidão resultou economicamente de três movimentos conjugados: a) o fim da primeira Revolução Industrial (1760-1840) e o começo da chamada segunda Revolução Industrial (1880-1920); b) a queda do custo de reprodução do homem branco na Europa (1760-1860), em razão do impacto sanitário e farmacológico da Revolução Industrial; c) o crescente custo do escravo negro africano, devido ao crescente custo de reprodução dos negros na África. Assim, o homem branco tornou-se, sob a forma de assalariado, mais barato que o escravo negro. Conseqüentemente, era possível substituir mesmo na periferia o trabalho escravo pelo trabalho livre e embolsar o ganho adicional. Finalmente, a eliminação dos escravos traria o benefício de expandir o mercado comprador de bens industriais na periferia do sistema.

As condições que tornam, portanto, o abolicionismo atraente existiam fora dele, sob a forma de interesses econômicos. O crescimento de tais interesses levou à proibição do tráfico de escravos pela Inglaterra e ao gradual estrangulamento das economias escravistas, até a desaparição das suas últimas formas, em Cuba (1887) e no Brasil (1888).

Desse modo, milhões de indivíduos viram-se lançados na condição de trabalhadores que deveriam receber alguma forma de salário, em uma sociedade em que a evolução dos salários evidenciava-se visivelmente paralítica (em São Paulo, por exemplo, o salário rural não chegou a dobrar entre 1840 e 1906). Os proprietários em larga escala introduziram enorme quantidade de imigrantes, ano a ano, para se assegurarem de mão-de-obra adequada a preços cadentes. Houve anos em que, considerando-se apenas a imigração italiana, ela pareou com a população da cidade do Rio de Janeiro, à época. Seria como se hoje em dia entrassem 5 ou 6 milhões de imigrantes ao ano, de uma única procedência.

Ao atirar o número da força de trabalho lá para cima, a classe proprietária transferia para os trabalhadores o problema do custo de subsistência, fixando a reprodução da força de trabalho em nível muito baixo. É bem verdade que isso no longo prazo sabotaria as possibilidades de acumulação interna. Uma força de trabalho excessivamente barata não podia gerar diferenciações sociais importantes dentro dela, renovando dessa forma as divisões sociais do trabalho e gerando uma burguesia mais ampla. No entanto, no pensamento da oligarquia dominante este problema inexistia. Tratava-se simplesmente de ganhar o máximo no tempo mínimo, sem nenhum horizonte de solidariedade, de classe ou de cidadania.

É na presença da formação desse enorme ajuntamento de trabalho que o negro e os membros da nova imigração deveriam se encontrar no quadro mercadológico do pós-abolição. Os imigrantes europeus substituíram os negros praticamente em todas as atividades importantes. Tomaram-lhes os empregos, os postos de trabalho, as ruas, os bairros em que viviam e impediram a sua presença na escola, na oficina e na fábrica. As proporções do movimento de exclusão podem ser acompanhadas apenas na crônica policial, porque a historiografia não ousou ainda debruçar-se sobre o todo de suas implicações.

Semelhantes questões foram percebidas e de certo modo consideradas por Petrônio no texto que você vai ler. Muito desse assunto o autor haverá de trazer em outros trabalhos subseqüentes.

A questão da malandragem é um tanto complicada. Não se tem um conhecimento rigoroso da origem do termo. Reza a tradição mediterrânica que o malandro nada mais é do que um elemento resultante da diáspora de parte dos kazânidas, que se recusaram a se converter ao judaísmo, na Baixa Idade Média. Nesse caso, os ciganos seriam os turcos que mantiveram o seu sistema familiar, ao passo que os "habitantes da terra má" (mallander) seriam aqueles que abandonaram a estrutura familiar própria dos turcos. Seriam, assim, "malandros" aqueles milhares de imigrantes turcos despejados pelo Bósforo no Mediterrâneo, e encontráveis em todas as cidades, particularmente no arco que vai da Sicília às ilhas Maiorcas, compreendendo Nápoles, Gênova, Nice, Marselha, Barcelona, etc. Dedicados desde sempre à pesca, à marinharia, ao pequeno comércio, ao entretenimento nos mercados e vias públicas, os representantes da terra má evidentemente atraíam os perseguidos de todas as partes, os preteridos, os aventureiros, os alijados e se associavam a eles. Assim, desde logo, os malandros haveriam de se caracterizar como expertos nas artes de lograr a autoridade, enfrentar a polícia, praticar com êxito os jogos de azar, a magia, a prostituição, etc.

O vagabundo trata-se de algo um tanto diferente. Como diz essa palavra provençal, trata-se de um servo da gleba fugitivo, sendo "bond" servo da gleba e "vaga" o ato de escape às suas obrigações. Na verdade, podemos crer que, na bacia mediterrânica, os vagabundos precederam aos malandros, com eles mais tarde se juntando; e talvez aceitando a sua liderança para o estabelecimento de regras de um viver comum, ao arrepio da lei.

É de entender que a intensa imigração italiana e espanhola no fim da escravidão, os contingentes mediterrânicos que desde o século XVII sempre mereceram destaque no povoamento do Brasil, recebeu notável reforço o que permite compreender a atualidade das expressões "malandro" e "vagabundo" , fosse no estertor do Segundo Reinado, fosse no alvorecer da Primeira República. Como foi, portanto, que um termo usado para classificar uma camada social do Mediterrâneo passou então a designar os negros? Certamente o ardor desses últimos na luta pela preservação ou pela afirmação de sua liberdade, desde a agonia do cativeiro, é que pode explicar não só a proximidade de ideário como até a eventual interpenetração dessas distintas camadas étnicas, que aqui deveriam tender, nas condições brasileiras, para certa homogeneidade social. A navalha do português, ou mais possivelmente do marujo do Mediterrâneo, deve ter-se identificado com o negro livre carregador dos armazéns portuários. Arma passível de rápida desaparição, podia substituir com êxito o facão e a foice dos distantes canaviais. Assim também a capoeira soube substituir o savate e o varapau. Não é absurdo que a figura do negro amante da liberdade, arredio a entregar-se a um trabalho desqualificante e mal remunerado, se haja associado a rebeldes importados pela imigração descuidada. Mas causa certa estranheza que só ele, o negro, tenha vindo a se caracterizar na Primeira República como o navalhista, o caceteiro, o cafetão e o organizador do jogo de azar.

No entanto, guardadas as devidas proporções, o que ocorria era organizar-se a sociedade com quase cem por cento de negros dedicados a qualquer forma possível de trabalho. Ambulantes, pescadores, marceneiros, carregadores de todos os tipos, etc. abundavam nas cidades, indicando que abaixo da mão-de-obra operário-imigrante havia toda uma camada de trabalhadores sub-remunerada, com ganhos que não poderiam explicar a sua reprodução social.

Esta é a história do trabalhador negro na Primeira República. Trata-se de um trabalhador semi-escravo, um trabalhador rejeitado pelos assalariadores, um trabalhador hostilizado socialmente pela própria classe operária em formação nas cidades. Este negro alijado constitui o seu próprio mundo, ideando aí as suas próprias mitificações. Desde a margem extrema do todo social, ele se reorganiza e vai pouco a pouco reabsorvendo as camadas societárias que pareciam destinadas a destruí-lo. Nos livros de ocorrências que sobreviveram das delegacias da Primeira República, onde se praticava uma forma de genocídio contra o negro, o famoso "apanhar borracha", pode-se verificar a enorme quantidade de conflitos ocorridos dentro e fora dos locais de trabalho. Nesses lugares, rejeitava-se o negro em sua condição de ser humano. Nos relatórios dos hospícios, completam-se os dados do fichário policial. Os negros são sempre visualizados como mentirosos, paranóicos, alcoólatras e dementes, negando-se-lhes por completo a historicidade de suas próprias narrativas de vida.

Seriam as manias de perseguições dos negros meras desculpas para escapar a uma derrota na competição pelo trabalho, ou teriam elas algum fundamento no desconforto real das relações sociais e ideológicas? Petrônio em seu trabalho descreve o papel secundário desempenhado pelo negro como trabalhador industrial no processo de industrialização de São Paulo na Primeira República. Esse papel secundário não derivava de uma incapacidade inata do negro para o trabalho industrial. Como se pode comprovar da literatura do Segundo Reinado, e como se pode verificar posteriormente, ao analisar a Era Vargas, o negro estava apto para o trabalho industrial, não sendo de modo algum menos capaz individualmente do que os seus colegas fabris de outras origens. A questão se cifrava numa verdadeira frente única criada pelas organizações sindicais e patronais, pelo ambiente europeu do trabalho em São Paulo, para eficazmente excluir o negro de qualquer atividade "de ponta" no processo produtivo. Não se desejava confiar nele, pagar-lhe melhor ou, mesmo, obrigar-se cada qual a dirigir-lhe a palavra em condições nem sequer aparentes de igualdade. A força do racismo entre patrões e empregados de origem européia é que explica o grau de exclusão do negro no processo de industrialização de São Paulo.

A historiografia recente ousou abordar muitos aspectos do referido processo de industrialização. No entanto, uma visão preconceituosa, muito comum nos meios acadêmicos, chega a negar que haja interesse científico na interpretação do télos do racismo na conformação do modo capitalista brasileiro. Para essa historiografia negativamente comprometida, o racismo não seria um assunto histórico-econômico ou mesmo submetível a trato científico. Opondo-se a semelhantes distorções, Petrônio incluiu-se entre os que oferecem um comprometimento positivo da historiografia, buscando deslindar as mais graves peculiaridades de nossa história, e por que estas nos levaram ao lugar em que ora nos encontramos.

Wilson do Nascimento Barbosa
Professor do Departamento de História da FFLCH-USP

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