São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2002
 

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De fera a impulso elétrico

RAFAEL CARIELLO
RODRIGO TAVARES
DA EQUIPE DE TRAINEES

A dor devorou os gregos, foi louvada pelos medievais e combatida pelos vitorianos. Embora seja uma sensação comum aos homens, foi valorizada e explicada de maneiras diferentes ao longo da história.

Nos textos épicos e trágicos da Grécia Antiga, a dor é percebida como um ser independente que ataca e "devora" o indivíduo. Segundo Roselyne Rey, autora do livro "History of Pain" (A História da Dor, editado pela Harvard University Press), a dor era compreendida como um ser vivo que se alimentava da vítima.

Para a medicina da Antiguidade, a dor era provocada pelo desequilíbrio dos "humores" -sangue, cólera, fleuma e bile.

A combinação em diferentes quantidades dessas substâncias do corpo determinaria as características físicas e emocionais das pessoas. Cada uma delas estava associada a diferentes "qualidades": frio, quente, úmido e seco.

As dores poderiam ser causadas por desequilíbrios internos dessas substâncias ou por modificações provocadas por agentes externos, que perturbavam a "continuidade" do corpo -como aquelas resultantes de ferimentos.

O tratamento das dores consistia em equilibrar os "humores": com gelo, água quente etc.

Qualidade feminina

Segundo o historiador francês Georges Duby, no livro "Idade Média, Idade dos Homens", a sociedade militarizada da Alta Idade Média (do século 4 ao século 11) percebia a dor como um sentimento feminino, que devia ser evitado pelos homens.

A partir do século 12, devido à exaltação do sofrimento de Cristo, a dor passou a ser valorizada como uma forma de manifestação da fé.

No Renascimento, a cultura européia ganha características antropocêntricas -o homem é colocado no "centro do universo". O sofrimento físico passa então a ser associado ao indivíduo, e não à religião.

Essa revolução e o aumento da importância do homem legitimam o surgimento dos estudos de anatomia e a dissecação de cadáveres, que antes era considerada profanação do corpo .

O declínio da religiosidade coincide com a ascensão da revolução científica dos séculos 16 e 17. O filósofo francês René Descartes utilizou o método das ciências exatas para tentar explicar o sofrimento físico. Foi o primeiro a afirmar que a dor, partindo da pele, corria por filamentos até ser percebida pelo cérebro -um modelo simples do sistema nervoso.

No Iluminismo (século 18), ocorre um processo de secularização da dor. Os médicos do Século das Luzes passam a estudá-la a partir dos cinco sentidos, sem fazer referência a Deus ou ao Demônio. Praticam uma medicina empírica, baseada na observação, e procuram entender qual a mecânica da dor -como surge e como é transmitida dentro do corpo até chegar ao cérebro.

O fato de alguns animais se moverem após a morte fez os médicos do século 18 se perguntarem se a dor acabava junto com a vida.

Os aristocratas guilhotinados na Revolução Francesa sentiram dor após ter a cabeça separada do corpo?

O famoso episódio em que o carrasco dá um tapa na cabeça decapitada de Charlotte Corday e ela fica vermelha aumentou a suspeita de que os nobres sentiam dor após a decapitação.

Eletricidade

O modo como compreendemos a sensação de sofrimento físico surgiu, fundamentalmente, no século 19. Consolidaram-se os modelos de transmissão da dor por um sistema de nervos que se comunicavam com a medula e de lá com o cérebro.

No século em que o homem "domesticou" a eletricidade -armazenando-a e conduzindo-a por fios de alta tensão até as cidades-, descobriu-se que também a dor era transmitida por impulsos elétricos.

Ao mesmo tempo, as descobertas da química possibilitaram a criação de analgésicos e anestésicos mais eficientes e seguros.


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