São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2002
 

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Fé na ciência cria expectativa irreal

RAFAEL CARIELLO
DA EQUIPE DE TRAINEES

A evolução da ciência médica nos últimos dois séculos provocou pelo menos um efeito colateral: a crença de que o progresso seria irrestrito e que, algum dia, se poderia acabar com o sofrimento físico.

Médicos e psicanalistas ouvidos pela Folha dizem que, por conta disso, o homem tolera cada vez menos a dor. Para o psicanalista Carlos Plastino, 59, do Instituto de Medicina Social da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), a sociedade contemporânea tenta se dissociar, tanto quanto possível, do sofrimento físico.

"Isto é muito diferente de buscar atenuá-lo ou, de alguma maneira, torná-lo mais suportável", diz Plastino. O ideal de superação da dor se origina, para o psicólogo, no modo como as pessoas se relacionam com a ciência. "Ela [a utopia" integra a perspectiva dominante que, divorciando radicalmente o homem da natureza, nutre a ilusão de que ela possa ser dominada e controlada de maneira absoluta", afirma.

O médico João Augusto Figueiró, 50, do Hospital das Clínicas de São Paulo, concorda. "Passamos por um período de iluminismo, de achar que a ciência resolveria tudo aquilo que a religião não resolvia. Na medida em que a ciência entrou na vida humana, fomos nos tornando mais intolerantes com algumas coisas que são naturais."

Para o médico, as esperanças depositadas na ciência são irreais. A expectativa que as pessoas têm dos profissionais de saúde, diz ele, é muito acima daquilo que eles podem oferecer.

Além disso, segundo Figueiró, muitos médicos compartilhariam dessa visão irreal da ciência. "Há 30 anos, a medicina teve um delírio de grandeza, uma expectativa de resolução de todos os problemas. Esse ufanismo passou para a população."

Para o professor de antropologia Eduardo Viana Vargas ,da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o sonho irreal de podermos um dia viver sem dor "é paralelo, por exemplo, à expectativa de que se descubram curas para todas as doenças e, quem sabe, algum modo para escamotear a morte".

Retorno ao paraíso

Apesar de a utopia de superação da dor ligar-se à idéia de progresso da ciência, ideologia historicamente recente, também é possível encontrar motivações ancestrais para esse desejo.

O psicanalista Ricardo Goldenberg, no livro "Utopia e Mal-Estar na Cultura: Perspectivas Psicanalíticas", diz que todas as utopias estão "organizadas em função de um horizonte ideal, proposto à comunidade como o fim a ser alcançado para reencontrar o éden perdido".

De fato, ao serem expulsos por Deus do paraíso, a condenação a que foram submetidos Adão e Eva foi a de sentirem dor.

"Farei com que, na gravidez, tenhas grandes sofrimentos, é com dor que hás de gerar filhos", disse Deus à mulher.

E ao homem: "É com fadiga que te alimentarás".

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