10/12/2008
No dia seguinte a sua edição, AI-5 já era motivo de piada
CHICO FELITTI
DA EDITORIA DE TREINAMENTO
"Não tenho garotas de bunda de fora. No show, somos eu e meu violãozinho. Como diz o ditado popular: 'Quem não tem cão, caça com gato'. Quem não tem gato, caça com ato." Foi com essa piada que Ary Toledo, 71, encerrou a primeira apresentação do espetáculo "A Criação do Mundo Segundo Ary Toledo", em 14 de dezembro de 1968. Menos de 24 horas após entrar em vigor o Ato Institucional nº 5.
Como resposta, o comediante recebeu gargalhadas da platéia do Teatro de Arena, em São Paulo, e um "convite irrecusável para uma conversa" feito por dois agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que invadiram o camarim ao final do show.
Na delegacia, na praça da Luz (onde atualmente fica o museu Estação Pinacoteca), ficou cinco horas trancado em uma cela, até ser levado ao coronel, conta.
Por sorte, o militar era fã de seu humor boca suja e o que poderia ter sido uma prisão por crime político sem direito a habeas corpus e com dez dias em que o preso ficava incomunicável, segundo as novas regras dadas pelo AI-5 virou apenas um ralho.
Patricia Stavis/Folha Imagem |
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O humorista Ary Toledo, 71, que diz ter tido de parar com anedotas políticas após o AI-5 |
Mas o pito não foi suficiente para que Toledo parasse totalmente de fazer choça do ato _mesmo que se queixe de ter sido obrigado a substituir o grosso das anedotas políticas por outras de conteúdo chulo.
Inconsciente
No mesmo dia, houve também quem não tinha intenção de fazer graça com a crise política, mas acabou imprimindo humor acidental a seu trabalho. É o caso do quadrinista Maurício de Sousa. Na manhã de 14 de dezembro, dia seguinte ao anúncio e instituição do ato, a tirinha publicada na <bf>Folha<xb> tinha um quê de profecia.
Após entrar na tenda de um adivinho e pedir para ele ler seu futuro, Cascão ouve que não vai ter adivinhação pois uma nuvem preta apareceu na bola-de-cristal. "Foi uma incrível coincidência, que me fez morrer de medo naquele tempo!", conta Sousa, rindo.
O pai da Mônica lembra de outro acaso entre seus personagens e a ditadura: em 22 de março de 1964, ele publicou na Folhinha uma tirinha em que o dinossauro Horácio participava, por acidente, de um golpe que derrubava o rei dos Napões _povo pequeno, narigudo e torpe. Nove dias depois, caía o presidente João Goulart, derrubado pelos militares.
Sofisticado
Para Maria da Conceição Francisca Pires, historiadora da UFRJ que pesquisa o humor feito durante a ditadura, só ria quem soubesse exatamente o que estava acontecendo.
"Para ver graça, o leitor precisava estar inteirado dos acontecimentos, da política." Rir, portanto, era uma afirmação de inteligência muito mais que papo de alienado, diz a professora.
Ainda segundo Pires, o humor passava batido da repressão por ser sofisticado demais para censores. A "tática mais sutil de expressar críticas políticas e de costumes" era menos punida que a música, que teve artistas exilados.
Ary Toledo diz ter passado (quase) impune porque censores "nunca 'levavam por trás' a subversão do humor". Quatro décadas depois do ato, Maurício de Sousa ouviu de um ex-funcionário de um órgão de censura a explicação de tanto "espírito esportivo" com as piadas. "Ele disse que o governo achava bom ter uma válvula de escape justamente em uma área não levada muito a sério."
Grande expoente do humor na ditadura, o cartunista Henfil deu sua definição de qual era o papel do riso nos anos de chumbo. "[O humor é] Linguagem do pê, que só nós entendemos e [cujas] gravidade e qualidade percebemos", escreveu na seção de cartas da revista "Fradim", em 1977, quando o ato completava nove anos.