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Novo em Folha 46ª turma
11/12/2008

Fracasso em derrubar AI-5 levou Costa e Silva à morte - entrevista com Ivo Arzua

CLAUDIO DANTAS SEQUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
NANCY DUTRA
DA EDITORIA DE TREINAMENTO

O presidente Arthur da Costa e Silva começou a sentir os primeiros sintomas da isquemia que o levaria à morte em 17 dezembro de 69 na noite de 25 de agosto do mesmo ano, quando foram rejeitadas pelos militares suas propostas de derrubada do AI-5 e promulgação de uma nova Constituição.

"Ele traduziu essa frustração na saúde", diz Ivo Arzua, 83, um dos quatro sobreviventes da reunião que editou o AI-5. Em entrevista à Folha, o ex-ministro da Agricultura (1967-1969) contou detalhes do estado de saúde do presidente nos últimos dias de seu mandato, relatados pela primeira-dama Yolanda no velório do general.

Convidado pelo próprio Costa e Silva para assumir a pasta, Arzua -que também foi prefeito de Curitiba, cidade onde vive atualmente- se emociona ao lembrar-se do "grande homem público" que foi o presidente.

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Jonas Oliveira/Folha Imagem
Ivo Arzua, que foi ministro da Agricultura de Costa e Silva
Ivo Arzua, que foi ministro de Costa e Silva

FOLHA - Como recebeu o convite para assumir o Ministério da Agricultura, em 67?

IVO ARZUA - Costa e Silva foi informado sobre meus projetos em Curitiba [Arzua foi prefeito da cidade entre 62 e 67]. Quando veio ser homenageado pela universidade e pelos clubes de rotarys, ele visitou a região onde estávamos construindo 2.500 casas. O Costa e Silva se entusiasmou e me convidou para ser ministro da Agricultura e do Abastecimento. Eu disse: "Presidente, não sou agrônomo, não tenho fazenda. Sou engenheiro civil e administrador". "Não, mas você é um bom planejador." Ele tinha umas expressões interessantes, bem populares. "Planejador? Melhor que isso, você é um bom fazejador. E a agricultura precisa das duas coisas, planejador e fazejador." "Presidente, tem gente melhor. Olha, sou professor na universidade, engenheiro civil. Já estou com a minha vida definida." Ele deixou passar. Na segunda, me convidou e eu neguei da mesma maneira. Na terceira vez ele disse: "Se você não for, o Paraná não vai ter ministro". Era uma chantagem emocional... então, aceitei.

FOLHA - Como era sua relação com o presidente Costa e Silva?

ARZUA - O presidente era ministro militar, mas ele não agia assim. Sediava o governo federal, mas ficava numa rotatória pelos Estados debatendo os problemas. Nenhum outro presidente democrático fez isso. Quando o Costa e Silva convocava a gente [os ministros], ele sabatinava. Tem uma imagem de que ele não é muito inteligente. Mas não é verdade. Dava a missão e cobrava. [...] Na reunião inicial de instalação dos ministérios, quando tomou posse, olhou para nós e disse: 'Que Deus nos ajude!' e chorou. É um ser humano.

FOLHA - Em quais circunstâncias recebeu a notícia da reunião do CSN que editaria o AI-5?

ARZUA - Estávamos no Rio Grande do Sul e o presidente recebeu um telefonema de que no Rio de Janeiro estava um surto revolucionário. Estavam invadindo farmácias, roubando narcóticos, incendiaram vários carros. E haviam seqüestrado três embaixadores. Criou-se um clima internacional de total insegurança em relação ao Brasil. Queriam fechar as embaixadas, de medo. Então, reuniu-se o Conselho. Os órgãos de segurança expuseram a situação, e os relatórios diziam que não havia outra alternativa para vencer o surto revolucionário.

FOLHA - O discurso do Márcio Moreira Alves influenciou a decisão?

ARZUA - Foi uma gota d'água. O clima já estava tenso.

FOLHA - O sr. comenta ao longo do discurso que aquele era o momento do "encontro com a verdade nacional". Sua fala foi preparada com antecedência?

ARZUA - Pensei que era um momento muito sério para o Brasil. Preparei o discurso porque sabia das intenções, pelas conversas, que ia ser aprovado um ato de cessão. Aí fiquei preocupado. Eu era civil, estava sujeito às informações que vinham dos órgãos.

FOLHA - Como era a relação com órgãos de informação dentro do ministério?

ARZUA - Não sei se é porque eles sabiam que eu era civil, mais técnico do que político, vivi isso só uma vez. Um dia, em Brasília, um auxiliar meu, que devia ser agente do SNI, me perguntou se eu sabia qual era a imagem que eu tinha no SNI. Eu disse: "Não, não sei, estou cumprindo minha missão aqui. Acho que estou indo bem, o presidente também pensa assim". Aí ele me disse que lá tinha uma informação de que eu não estava indo bem. E me pediu pra que eu não comentasse com ninguém. Só com o presidente da República, falei. Contei o que aconteceu e que não estava de acordo, Mas falei que, se a opinião do presidente era igual a deles, ele poderia me demitir. Nossa, mas eu não esperava a reação dele. Mandou chamar o Medici. Ele veio lá, o presidente levantou... [imita, levantando-se da cadeira] "Não admito, não admito. Ele é meu ministro. Quem julga meus ministros sou eu." Na minha frente? O presidente ficou indignado. E o Medici deve ter ficado com ódio de mim. Nunca manifestou.

FOLHA - Qual era o clima entre os ministros no dia da reunião?

ARZUA - A gente estava sob tensão. Os outros falando, mas a gente estava preocupado e, às vezes, não dava para pegar tudo.

FOLHA - Como foi seu voto?

ARZUA - Eu concordava sob duas condições principais: que fosse de curto prazo, para vencer esse clima revolucionário, uma vez libertados os embaixadores, e convocar uma Constituinte, aproveitando o AI-5, para isso. Elaborar uma Constituição autenticamente brasileira. A nossa diz assim, República Federativa do Brasil. Ela é federativa? É unitária, tudo se resolve em Brasília.

Jonas Oliveira/Folha Imagem
Ivo Arzua, que foi também prefeito de Belo Horizonte
Arzua foi também prefeito de Curitiba

FOLHA - E a Constituição de 88, o que pensa sobre ela?

ARZUA - Não foi aplicada. Quando o ministro Felipe González, da Espanha, veio ao Brasil, foi ao Congresso. Ulysses deu a ele a cópia da constituição. Quando ele saiu, os jornalistas queriam saber a opinião sobre o anteprojeto. Disse que uma Constituição não é uma lista telefônica. Uma Constituição deve ter seus princípios doutrinários e leis complementares. Esse foi o conselho que ele deu e a minha opinião é a mesma. Tem até juros! Não pode, não pode.

FOLHA - O sr. também dedica grande parte de seu voto criticando a "falta de substância filosófica dos partidos políticos". O que mudou desde então?

ARZUA - Em primeiro lugar, eles não são partidos porque o povo tem que estar lá dentro. Quem está lá são os donos dos partidos, que se eternizam. Isso aprendi muito nos Estados Unidos, quando estive na Califórnia. As grandes eleições americanas são dentro dos partidos. [...] Ficha-suja lá não entra.

FOLHA - A sua opinião, com relação à edição do ato, era compartilhada entre os outros ministros do AI-5?

ARZUA - Foi minha. O pessoal critica, é fácil criticar. Mas, ponha-se no nosso lugar. Churchill e Roosevelt resolveram se reunir com Stálin para vencer Hitler. Foram duramente criticados por terem se reunido com os comunistas. Mas para derrotar o nazismo, só com a ajuda do Stálin. E é o caso do AI-5. Eles também achavam que devia ter uma nova Constituinte, mas diziam que, naquela época, não tinha condições. Inclusive o problema do Lamarca [Carlos Lamarca, ex-militar que virou guerrilheiro], tudo isso foi muito traumatizante.

FOLHA - Houve discordâncias?

ARZUA - Não porque as informações dos órgãos de segurança eram muito taxativas. Inclusive dessa ligação com Moscou e com o comunismo. Tem um livro, francês, que diz que o comunismo matou 100 milhões de pessoas no mundo. E iam matar no Brasil, claro. Eu, quando era prefeito, fui ameaçado. Diziam que eu ia aparecer pendurado num poste. Eles vinham pela violência. Se eles viessem democraticamente, tudo bem.

FOLHA - O sr. considera a ditadura de direita mais aceitável que uma de esquerda?

ARZUA - Nenhuma ditadura é justificável. Mas, sinceramente, eu admiro muito o militar brasileiro. Honesto, competente, patriota. Uma qualidade que falta muito a nós civis.

FOLHA - Se o objetivo era frear o "surto revolucionário", qual a relação com o fechamento do Congresso?

ARZUA - Porque o Congresso não estava de apoio com essas medidas autoritárias. Então, chegou-se à conclusão de que não restavam alternativas.

FOLHA - O Sr. também era próximo de políticos contrários ao regime, como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. Como eles reagiram ao ato?

ARZUA - Tancredo e Ulysses mostraram seu desacordo com relação ao AI-5, e eu expliquei a eles a situação. Tanto é que depois, mais à frente, eles me convidaram para ir junto com eles [na Frente Nacional de Redemocratização do MDB].

FOLHA - O que o presidente comentava sobre a edição do AI-5?

ARZUA - O Costa e Silva disse: 'É, ministro, infelizmente tivemos que tomar essas medidas'. Ele não era a favor disso, foi levado pela unanimidade dos órgãos de segurança. Não só os nacionais, mas internacionais. Mostravam a infiltração comunista do Brasil, eles recebiam ordem de Moscou. Isso foi publicado em jornais. A situação era realmente séria. 'Não tem outra alternativa, ministro. Mas fique tranqüilo que nós vamos conseguir, se Deus quiser, solucionar.' E ele ficou com isso na cabeça.

FOLHA - Existiu alguma tentativa de derrocar o ato?

ARZUA - Enquanto os órgãos de segurança adotavam medidas para soltar embaixadores e entrar em contato com revolucionários, ele pediu ao Pedro Aleixo que redigisse uma nova Constituição. Quando o texto estava pronto e o presidente achava que o clima já estava mais ameno, fixou a data de 7 de setembro de 69 para remeter a redação ao Congresso.

FOLHA - Por que o projeto não prosseguiu?

ARZUA - Não pude ir à comemoração de 25 de agosto de 69, Dia do Soldado, no Congresso. No dia seguinte, soube por um amigo meu que esteve presente que o presidente, quando falou aos ministros militares que ia derrubar o AI-5, eles se declararam contra, que não era hora de o Brasil se redemocratizar. Aí o presidente, intensamente traumatizado, voltou ao palácio e o resto da história eu descobri no guardamento dele, enquanto dava os pêsames à dona Yolanda.

FOLHA - O que ela contou ao Sr.?

ARZUA - Ela disse que aquela noite, de madrugada, ouviu um barulho no banheiro. Levantou-se, ele estava de pijama, o cabelo meio revolto, e ela disse: 'O que é, Costa?'. Ele fez assim [aponta para a língua], não conseguia falar. Era o início do derrame. [...] Eu estava repousando em Curitiba sob ordens médicas e o chefe da Casa Militar [Jayme Portella] telefonou pedindo minha presença porque o presidente ia descer no aeroporto militar no Rio, onde ia ser tratado. Foi a última vez que o vi em vida. Não deixavam a gente visitá-lo, só os militares. E dona Yolanda contou que ele, por não cumprir aquilo o que tinha prometido, de reabrir o Congresso, já não falava mais, só por gestos. Depois que morreu, levantaram o colchão... ele fingia que tomava os remédios. Ele estava tão profundamente desgostoso com o AI-5. Era um homem muito sério.

FOLHA - Houve arrependimento da sua parte por ter assinado o ato? Sente-se traído?

ARZUA - Arrependimento, não. Não digo traído, mas frustrado. Como o Costa e Silva. Ele traduziu essa frustração na saúde. Eu também, tanto que fiquei em repouso. Era altamente frustrante.

FOLHA - Como deixou o governo?

ARZUA - Fui até a junta militar com meu pedido de demissão. Eles argumentaram que não aceitariam porque militares não estavam acostumados a receber pedido de demissão. No Exército, você é demitido. Meu hábito é esse, sempre saio com o meu chefe. Meu amigo saiu por doença, quero sair com ele. Falei isso, que não estava sendo cumprida a decisão do Costa e Silva de convocar Constituinte e acabar com o AI-5. Eles achavam que não era o momento.

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