Treinamento
08/07/2009 - 13h13

Língua proibida revive no Acre

LUIZA BANDEIRA
da Editoria de Treinamento

Railda Manaitá, 79, permanece calada enquanto tenta lembrar como se diz "bananeira" em poianaua. Ela olha para cima e se concentra. Até conseguir dizer "xiku", aliviada, são longos 30 segundos de silêncio e apreensão.

Os poianauas contam com a memória de Railda, única pessoa que ainda fala bem a língua indígena. Precisam dela para salvar da extinção um idioma proibido quase cem anos atrás.

O desafio é grande. A única história conhecida de língua que ressurgiu é a do hebraico, que perdeu o uso durante a diáspora judaica e ficou restrito à liturgia por cerca de 1.800 anos. Foi recriado e hoje é língua oficial de Israel.

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Railda Manaitá (à esquerda), uma das últimas falantes da língua puyanawa, com a neta, Joaná Manaitá, que não aprendeu o idioma
Railda Manaitá (à esquerda), uma das últimas falantes da língua puyanawa, com a neta, Joaná Manaitá, que não aprendeu o idioma

O poianaua começou a desaparecer por volta de 1910, quando os índios foram sequestrados e escravizados numa fazenda de extração de borracha. Os seringalistas proibiram a língua e criaram uma escola para ensinar o português.

Quem falava poianaua era castigado. Podia ter os olhos furados e dentes e unhas arrancados sem anestesia, de acordo com o linguista Aldir de Paula, da Universidade Federal de Alagoas. "Os patrões foram inteligentes. É pela língua que existe controle social."

Hoje, os poianauas vivem onde funcionava a fazenda, em Mâncio Lima (AC), quase na fronteira com o Peru. Entre os cerca de 500 índios, outros dois lembram da língua: o irmão de Railda, Luiz Manaitá, 85, e o ex-cacique Mario Puyanawa, 65. Mas só ela é fluente.

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José Luiz Martins, professor de artes da escola indígena Ixubãy Rabuy Puyanawa
José Luiz Martins, professor de artes da escola indígena Ixubãy Rabuy Puyanawa

Os três aprenderam porque pertenciam às poucas famílias que desobedeciam às regras. Na época, também, o preconceito fez com que muitos parassem de falar por vergonha.

A transmissão cessou nessa geração. Os filhos e netos deles não aprenderam a língua.

Escola indígena

A valorização da cultura veio com o processo de demarcação de terras, concluído em 20021. Um ano antes, a escola adotou um modelo de ensino que valoriza a diversidade. A partir daí, o local criado para destruir o poianaua se tornou o principal foco de resistência do idioma.

A escola vai do ensino infantil ao médio. Os 232 alunos respondem à chamada em poianaua e dançam músicas típicas. O professor do idioma traduz o que é ensinado nas disciplinas. Na aula de matemática, por exemplo, falam os números também em poianaua.

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Desenhos feitos pelas crianças puyanawa na escola Ixubãy Rabuy Puyanawa, em Mâncio Lima (AC); atividades são usadas para aprendizado da língua puyanawa
Desenhos feitos pelas crianças puyanawa na escola Ixubãy Rabuy Puyanawa, em Mâncio Lima (AC); atividades são usadas para aprendizado da língua puyanawa

As aulas já foram dadas pelos falantes da língua. Mas problemas de saúde tornaram Railda e Luiz presença rara nas salas. Já Mario Puyanawa passou a função para seu filho, Samuel, que herdou do pai um caderno em que está anotado tudo o que ele lembrava da língua.

Não é suficiente. Como os professores não são falantes plenos da língua, o resultado é limitado. O aprendizado é restrito a nomes de animais, partes do corpo, números e frases simples. Para tornar viável a comunicação, Aldir de Paula está produzindo uma gramática. Mas o sucesso do projeto dos poianaua ainda depende de Railda. Só ela sabe, por exemplo, a entonação das palavras.

Recentemente, os poianauas descobriram outra esperança de contato com a língua "real". Ouviram falar que, no Peru, vivem representantes da etnia, que teriam escapado quando os indígenas foram capturados.

Língua difícil

Enquanto isso não é provado, Jósimo Constante, 20, tenta aprender com Railda. Fala inglês e espanhol, mas diz que poianaua é "mais complicado".

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Cartaz em sala de aula da escola Ixubãy Rabuy Puyanawa, em Mâncio Lima (AC) mostra os números em puyanawa
Cartaz em sala de aula da escola Ixubãy Rabuy Puyanawa, em Mâncio Lima (AC) mostra os números em puyanawa

A dificuldade é reflexo de um sistema linguístico que traduz uma forma diferente de enxergar o mundo. São essas riquezas, escondidas na diversidade dos idiomas, que desaparecem com a morte das línguas.

No poianaua, por exemplo, existem quatro formas de falar nós: uma que inclui quem está ouvindo, uma que exclui, uma que inclui quem ouve e quem fala e uma que significa todos os seres e criaturas.

Tantas palavras simbolizam a importância do coletivo para a etnia. A pedagoga Maristela Walker diz que o ensino formal da língua foi decidido em várias assembleias. "Decidem tudo em grupo. Leva muito tempo."

Os poianaua sabem que também vai levar muito tempo até o projeto de recuperação dar resultado. Esperam que isso aconteça nas próximas gerações, se os alunos transmitirem o idioma para seus filhos.

Railda espera que os jovens poianaua consigam usar seu conhecimento para salvar a língua. "Queria deixar meu nome na história."

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