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10/10/2007

HUCK, FERRÉZ, CAPITÃO NASCIMENTO

os textos abaixo foram publicados na edição de 11/10/2007 da Folha de S.Paulo
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1010200720.htm
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1010200718.htm
Foram reproduzidos aqui para ilustrar post do blog Novo em Folha
Os textos têm copyright, não devem ser reproduzidos

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1010200720.htm
ELIO GASPARI

O socialismo precisa de um Rolex
Na semana dos 40 anos da morte do Che, Luciano Huck faz lembrar a herança do guerrilheiro

O CIDADÃO terminou suas pesquisas na biblioteca de Londres e vai para casa, no Soho (rua Dean, 23). Passa um sujeito, mostra-lhe uma faca e pede o relógio. Ao narrar o caso à sua mulher, ele diz:
"Estou com 41 anos e a expectativa de vida neste inferno capitalista é de 40. A nossa dieta ultrapassa as 2.300 calorias que o proletariado consome. As condições de higiene e saúde desta cidade são infernais. Aos jovens restam poucas alternativas fora da sífilis e das prisões australianas. São as contradições do capitalismo e, por causa delas, fui assaltado por um garoto".
Pode ser que Karl Marx tenha dito diferente:
"Jenny, um lúmpen roubou meu relógio".
Pobre Luciano Huck. Foi assaltado por dois sujeitos que, de revólver na mão, tomaram-lhe o Rolex. Reclamou num artigo publicado na Folha do dia 1º e teria feito melhor negócio se saísse por aí, cumprindo "missões" em cima de motoqueiros. Foi acusado de ganhar muito e, portanto, ser fonte da violência. Mais: quem manda "pendurar o equivalente a várias casas populares no pulso"? Disse que "isso não está certo" e perguntaram-lhe o que devem dizer as pessoas que vivem de salário mínimo. Fechando o ciclo, num artigo marginal-chique, o rapper Ferréz respondeu com o olhar dos assaltantes e os óculos de Madre Teresa de Calcutá: "Não vejo motivo para reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo para ambas as partes".
Está mais ou menos entendido que o partido democrata perdeu a confiança dos americanos nos anos 80 porque deixou-se confundir com os defensores de bandidos. Cada um pode achar o que quiser (desde que não tome o relógio alheio), mas nesse caminho a discussão da segurança pública brasileira caminha para a formação de duas tropas, ambas julgando-se elite do seja lá o que for. Grita-se, para que tudo continue como está. O filme ensina: o traficante foucaultiano da PUC não foi para a cadeia e o PM larápio e covarde voltou para a tropa.
Por ser um profissional bem-sucedido e ter ganho um Rolex de presente da mulher (a apresentadora Angélica, igualmente bem-sucedida), Huck foi transformado num obelisco da desigualdade social brasileira.
Infelizmente, assaltos não melhoram o índice de Gini. No caso do Rolex do apresentador, especular o destino do dinheiro de sua venda é um exercício carnavalesco. Pode-se sonhar que tenha ido para uma família carente, mas é mais provável que tenha servido para fechar um trato de droga. Que tal as duas coisas, meio a meio? Uma coisa é certa, o Rolex voltará ao pulso de alguém disposto a pagar por ele.
Quis o Padre Eterno que esse debate indigente acontecesse logo na semana do 40º aniversário da execução de Ernesto Che Guevara, o Guerrilheiro Heróico. Se Angélica dissesse que deu o Rolex a Huck como parte dessas celebrações, a discussão ganharia um denso conteúdo ideológico.
Quando o Che foi assassinado, no mato boliviano, tinha dois Rolex. Um, modelo GMT Master, era dele. O outro, marcado com um X, era uma lembrança que tirara do pulso de um combatente agonizante. (O índice de com-Rolex dos guerrilheiros cubanos na Bolívia era de 12%, certamente um dos mais altos do mundo.)
Os relógios eram dois, mas há três por aí. Quem quiser pesquisar a herança de Guevara, pode começar investigando esse mistério.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1010200718.htm
MARCELO COELHO

Fascismo é outra história
Embora Nascimento seja o protagonista da história, ele não é apresentado como herói

FASCISTA? NÃO achei nem um pouco. Se há algo a concluir de "Tropa de Elite", filme de José Padilha, é que policiais são corruptos, torturadores e assassinos; que quando querem ser honestos aderem a um grupo de psicopatas; e que os traficantes são piores ainda.
Mas cabe entrar em acordo quanto à definição do termo. "Fascista", naturalmente, não se refere ao fenômeno político de extrema-direita comum nos anos 30, que envolve uma série de características ausentes quando se emprega a palavra hoje em dia.
Penso, por exemplo, na mobilização de massas em torno de um herói providencial, empenhado em "salvar a pátria" de perigos como o comunismo e a cobiça dos banqueiros internacionais.
Classificar um filme de fascista, atualmente, significa dizer que promove a glorificação da violência, o desprezo à lei e aos direitos humanos. Para o fascista, se não houvesse as ONGs para atrapalhar, a segurança pública estaria garantida. A polícia poderia fazer o seu serviço de limpeza, matando quantos bandidos quisesse, e assim todos os cidadãos de bem poderiam viver tranqüilos.
Nesse sentido, parcela expressiva da população talvez possa ser chamada de fascista; e aqueles que, assistindo a "Tropa de Elite", aplaudem as ações do capitão Nascimento (o excelente Wagner Moura), sem dúvida merecem essa qualificação.
Fora a circunstância de que a história se passa nos morros do Rio de Janeiro, esse público tem muito mais a aplaudir em qualquer filme de tiroteio americano do que na produção de José Padilha.
A primeira metade do filme quase não tem morticínio; o que vemos, sobretudo, é um retrato circunstanciado, e quase sociológico, da corrupção policial. Os carros estão em péssimo estado; peças e motores são roubados pelos próprios membros da corporação. Os PMs matam-se uns aos outros na disputa dos pontos de arrecadação de propina. O encarregado de distribuir as folgas entre os soldados exige pagamento para ser camarada.
Quanto aos incorruptíveis, estes só poderão sentir orgulho da polícia se envergarem a farda negra, com insígnias de caveira, do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais). Há ritos sinistros no meio da mata, treinamento brutal e obsessivo, tudo aquilo que, da SS nazista aos filmes de direita americanos, todo mundo conhece bem.
Mas, num filme americano, para nada dizer da propaganda nazista, há um aspecto que "Tropa de Elite" não apresenta de jeito nenhum. É a idéia de que, "assim", as coisas se resolvem.
Com toda evidência, o filme de José Padilha não faz essa aposta. Embora o capitão Nascimento seja o protagonista da história e, portanto, tenha traços de humanidade, não é apresentado como um herói nem como um injustiçado; muito menos sua humanidade se cerca dos recursos sentimentais tão comuns em Hollywood: ninguém ameaça seu filhinho, por exemplo, nem toca na sua mulher...
Ao longo de "Tropa de Elite", inexiste aquele aprendizado do ódio ao vilão que Hollywood costuma impor à platéia. E as cenas de violência, embora causem enorme impacto, não ganham aquela volúpia de pormenores, aquela coreografia quase mística, aquela secura decisiva e irretorquível que se produz, por exemplo, nas poucas coisas de Takeshi Kitano ou de John Woo a que tive estômago de assistir.
Claro que não se trata apenas de avaliar ideologicamente o filme de José Padilha. A polêmica tem incidido neste ponto, mas envolve um julgamento estético também. A "estética" fascista depende de simplificação psicológica, concessão sentimental, rigor hierático e erotismo reprimido. Não há nada disso, nem tampouco alguma beleza em "Tropa de Elite".
A arte do filme talvez esteja escondida em coisas muito sutis: por exemplo, a circunstância de que vários horrores daquela história em particular nascem de iniciativas aparentemente inocentes, como a de oferecer óculos novos a um menino da favela... Mas aí não posso contar mais nada.
Só concluo dizendo que fascista é o filme que apresenta a violência policial como solução. "Tropa de Elite" não mostra soluções, só problemas. E estes, com certeza, são bem fascistas.

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coelhofsp@uol.com.br

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