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Vícios modernos
20/06/2004

Íntegra: Jogo vira o único lazer de compulsivo

TATIANA LIMA

O jogo é uma forma de vencer a probabilidade, de ser quase Deus. A definição é da psiquiatra Maria Paula Magalhães, que fundou o ambulatório de jogo do Proad (Programa de Orientação e Tratamento a Dependentes) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Para ela, a necessidade de recuperar o que já se perdeu é o que separa o jogador compulsivo daquele que joga por lazer. Quando atinge este ponto, o jogador deixa de lado todas as outras formas de diversão, além da família e dos amigos, tornando-se uma pessoa ansiosa, tensa e irritadiça. É comum também que o vício em jogos acarrete graves problemas financeiros.

Folha - O que caracteriza o jogador compulsivo?

Oliveira - A característica principal é a crença de que precisa recuperar aquilo que perdeu. E aí ele entra em um pensamento mágico, não consegue enxergar a realidade e ver o quanto aposta e o quanto perde. Cada vez ele aposta mais, perde mais tempo nessa atividade, começa a jogar escondido porque as pessoas criticam, freqüentemente se endivida e aposta mais ainda para recuperar o que perdeu.

Folha - Quanto tempo demora para a pessoa procurar ajuda?

Oliveira - Esse é um problema. O jogo é um transtorno novo. Eu comecei a trabalhar com isso há dez anos, não se falava em jogo patológico. Era algo que se fazia nos Estados Unidos, e aqui eu fundei o ambulatório da Escola Paulista, o Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes). Nós tínhamos dificuldade para ter pacientes porque as pessoas que jogavam diziam que não tinham problemas com jogo. A mulher é que trazia o jogador arrastado, ela é que ficava sem dormir. E o marido achava que não tinha problema.

Folha - Nessa época o principal problema já era o bingo?

Oliveira - Em 1993, quando comecei a pesquisar, havia aquelas filas enormes na frente do Bingo Pamplona, mas não havia tantas casas de bingo. Os primeiros pacientes vinham por causa de videopôquer. Na época era proibido, mas havia essas casas clandestinas. Com o aumento do número de bingos, a maioria dos pacientes que aparecia freqüentava esse tipo de jogo. Quando surgiram os caça-níqueis de padarias e bares, a maioria dos pacientes era de viciados neles e em bingo. Eventualmente, tem um que perdeu no cavalo, no jogo do bicho, nas cartas. Mas a maior parte é de jogadores de bingo e caça-níqueis.

Folha - E quem mais procura ajuda, mulheres ou homens?

Oliveira - Mais homens, ainda que ao longo desses anos o número de mulheres tenha aumentado. A literatura especializada relata mais casos de homens que jogam do que de mulheres. Mas com o bingo, isso mudou. No começo havia uma mulher para cada três homens, hoje em dia há duas mulheres para cada três homens.

Folha - Como funciona o tratamento contra o vício?

Oliveira - Basicamente com psicoterapia.

Folha - Os jogadores compulsivos têm doenças associadas?

Oliveira - É muito comum terem depressão, transtornos de ansiedade. Na literatura observa-se bastante co-morbidade [presença de duas ou mais doenças juntas] com abuso de substâncias --álcool e drogas. Aqui não vemos tanto isso, mas eu acho que não dá para descartar. Jogador geralmente fuma muito. Eles ficam muito tempo parados em uma atividade, fumam um atrás do outro. As pessoas perdem a noção, é parecido com droga. Entram em um bingo e esquecem que é dia dos seus aniversários, pode haver uma festa em casa que não vão, há pessoas que ficam 30 horas em uma casa de bingo. Deixam de sair com amigos, com a família.

Folha - A família influencia no tratamento?

Oliveira - Ela pode ajudar bastante. É interessante se pudermos oferecer, junto com o tratamento individual, algum tipo de orientação familiar, porque a comunicação com a família fica inviável. O jogador prejudica seus familiares em vários aspectos. Primeiro com a própria ausência. Segundo, fica irritado quando não está jogando, além de endividar a família. Aí começam um monte de acusações, e as pessoas não se falam.

Se a família tentar entender o que está acontecendo e ajudar, o prognóstico do paciente é melhor. Até porque a pessoa perde a capacidade de lidar com dinheiro. Muitas vezes é preciso um familiar, um amigo que vá ajudar no começo. Os jogadores falam: "Eu não posso ter dinheiro na mão. O meu salário vai para a conta da minha esposa, eu deixo todo o meu dinheiro na mão da minha irmã." A primeira providência é quebrar cartão de crédito.

Folha - Quanto tempo demora o tratamento?

Oliveira - Varia. Quando a pessoa percebe que perdeu o controle e que precisa de ajuda, o tratamento é mais rápido porque ela colabora. Muitas vezes, a família, as pessoas falam: "Não está dando. Vai se tratar." A pessoa vai, mas é levada. Ela tem um comportamento ambivalente: por um lado quer parar, por outro, morre de vontade de jogar. Então, freqüenta o serviço, mas não adere a ele: falta, joga, recai. Enquanto não cai a ficha, é difícil ajudar.

Um dado sério a ser lembrado é que os índices de suicídio entre jogadores compulsivos são altos.

Folha - Devido a quê?

Oliveira - Há vários fatores. Pelo que vemos no consultório, os jogadores são inteligentes, pessoas que trabalharam, estudaram, constituíram família, têm por volta dos 40 anos. É diferente, por exemplo, do dependente de drogas que é um jovem começando a vida. Nesse sentido é complicado porque se alguém fuma maconha dos dez anos aos 20, esse é o tempo que ele deveria estudar, trabalhar.

O jogador, não. Bem ou mal, ele fez a vida. É uma pessoa respeitada, que tem coisas. É difícil abrir mão disso. Até o jogar é uma ilusão de que vai ganhar, ter tudo, dar aos outros presentes, pagar. Quando a pessoa percebe que ruiu tudo, muitas vezes ela não agüenta. Mais fácil ela se matar do que contar para a família que está quebrada, que tem um problema.

Folha - O Hermano Tavares falou da pseudogenerosidade do jogador compulsivo, que ele tende a falar que vai jogar, para ganhar e ajudar os outros.

Oliveira - É assim mesmo. Eu até brinco que eles não conseguem falar não para os outros e passam a vida falando não para si mesmos. Porque se for pensar, ele dá para o outro, dá todo o dinheiro para o bingo e se priva. Tudo que tem, jogou fora. No tratamento trabalhamos isso. A pessoa fala: " Nossa, eu consegui fazer a unha. Consegui comprar uma roupa." Tudo é muito caro, mas fazer cheque de R$2.000 no bingo é barato. São pessoas que não se permitem e dão tudo ao outro.

O tratamento é baseado no foco da onipotência --eu dou tudo, não preciso de nada, eu sou generoso-- versus a consciência de que a pessoa tem necessidades, tem que se controlar, tem limites. É interessante que o jogador se põe em um paradoxo: de tão generoso, fica sem nada. Vemos pessoas de 50, 60 anos recebendo mesada dos filhos, tendo que viver com pouquinho.

Folha - A vergonha atrapalha o tratamento?

Oliveira - Por isso que é interessante o trabalho com grupos. Na Escola Paulista de Medicina trabalhávamos bastante com grupos. Na hora que a pessoa chega a um grupo ela se identifica, vê que seu problema não é único.

Os jogadores acham que são incompreendidos. Eles têm que se perdoar para romper esse ciclo vicioso da culpa-castigo. Porque essa história do jogo é um jeito de se pôr de castigo. Nisso, ele perde tudo, fica sem nada e vive privado. Essa é a hora que ele vai entender, vê que isso aconteceu com outras pessoas, ver como os outros conseguiram sair dessa ajuda a pessoa a sair.

Folha - E possível que um jogador compulsivo vire um jogador eventual?

Oliveira - Na literatura, sim. O objetivo do tratamento não precisaria ser a abstinência. Há pessoas que falam em jogo controlado. Na prática, é muito mais fácil a pessoa parar de jogar do que ficar se testando. O que eu percebo é que o jogo ocupou toda a área de lazer, de vida afetiva do jogador compulsivo. Se a pessoa começa a investir e redescobre outras coisas, o jogo perde aquela importância. Eventualmente, até poderia jogar. No tratamento é desejável que a pessoa passe longe, em vez de ficar se testando.

Folha - Como você vê os jogadores anônimos?

Oliveira - São grupos organizados, para as pessoas que conseguem ir e pertencer funciona muito bem. Não é todo mundo que se identifica com essa proposta e que consegue freqüentar.

Folha - Quais os problemas?

Oliveira - As pessoas são diferentes. Os sintomas dos jogadores compulsivos são parecidos, mas as pessoas são diferentes e entram nessa história por razões distintas. Há pessoas que se encaixam nas regras dos anônimos. Outras chegam ali e não se sentem bem, não querem falar, não querem freqüentar.Esses grupos são diferentes de um grupo de psicoterapia em que há troca. Na psicoterapia, não é alguém que dá um depoimento e o outro ouve. Todo mundo conversa, questiona-se, confronta o outro, o terapeuta aponta questões o tempo todo. É um outro tipo de atendimento. Há pessoas que não suportam um grupo e gostam do JA (jogadores anônimos). Há outras que não gostam do JA e se dão bem em um grupo. Exitem aqueles que precisam de atendimento individual, não se vinculam a um grupo e individualmente conseguem.

Folha - Há pessoas que vêem os grupos anônimos como muito dogmáticos. Como a senhora vê isso?

Oliveira - Eu li um trabalho interessante que explica um pouco a eficiência dos grupos anônimos por conta da religiosidade. O jogo tem aquela história de a pessoa querer vencer a probabilidade, de ser quase Deus. E a hora que a pessoa vai para os anônimos, o primeiro passo é admitir que tem um ser maior, se ela consegue admitir isso, está com meio caminho andado para parar de jogar ou parar de beber.

Podemos até pensar na psicanálise. Há o inconsciente, não é só o ego que manda. Se entendermos o JA de uma maneira mais ampla, sem pegar ao pé da letra a espiritualidade, é possível entender porque ele funciona tão bem. Muitas vezes as pessoas consideram os passos dos anônimos literalmente e acabam "trocando de dependência". A pessoa deixa de ser alcoólatra e vira AA, segue carreira. Mas mesmo em termos de redução de danos, é melhor a pessoa participar de reuniões do que beber ou jogar.

O JA segura o sintoma. Muitas vezes isso já suficientemente para a pessoa reorganizar a vida e tocá-la. Isso é bom. Mas algumas pessoas não se contentam apenas com isso. Nesses casos, é interessante fazer outros tratamentos.

Folha - Jogador compulsivo tem síndrome de abstinência?

Oliveira - Não tem síndrome porque o que a caracteriza é uma série de sintomas, todos previsíveis. Com algumas drogas fala-se de neuroadaptação. Cocaína, por exemplo, não tem síndrome de abstinência, mas tem sintomas de abstinência. Com jogo é a mesma coisa.

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