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Vícios modernos
22/06/2004

Íntegra: Entrevista com Marcos Ferraz, psiquiatra, professor titular da Unifesp

Folha - Qual a importância dos psicofármacos (remédios psiquiátricos) na história da psiquiatria?

Marcos Ferraz - A psiquiatria se desenrola no século 20 de uma maneira muito importante. Para o psiquiatra, no tempo do hospital, a visão era uma visão custodial. O paciente entrava para ser cuidado.

O modelo asilar, por volta dos anos 30, começa a ruir.

Por volta de 1950, surgem os primeiros fármacos. Por volta de 1960, surgem os primeiros antidepressivos. Isso provoca uma mudança fantástica na visão do psiquiatra. Antes, a doença que era apenas olhada e custodiada, agora pode ser tratada. O deprimido sai da depressão, por exemplo.

Antes, a doença era apenas cuidada. Agora não; agora há a possibilidade de fazer uma intervenção, em equipes multiprofissionais, para tratar do doente.

A psiquiatria ganhou em 50 anos um arsenal terapêutico que ela não tinha desenvolvido em mais de 150 anos de desenvolvimento. Esse avanço é pro bem e pro mal. Às vezes, foi mal usado, isso pode acontecer.

O discurso da psicologia, que influenciou o mundo inteiro, é um discurso que dá conta de uma série de situações envolvendo as relações interpessoais. Porém, os quadros psicóticos, e alguns outros quadros, permaneceram inalterados.

Quando surgem os fármacos, o tratamento ganha um salto de qualidade. A perspectiva custodial muda.

Há, de um lado, o desenvolvimento de diagnósticos; melhora a capacidade diagnóstica _e isso é uma coisa que vem acontecendo na medicina em geral e da psiquiatria em particular.

Folha - Por que médicos não usam a palavra vício?

Ferraz - Para nós, a palavra vício vem carregada de um componente ideológico na área da diminuição da pessoa. Ser viciado acaba significando que é uma pessoa diminuída. Nós procuramos retirar essa palavra do nosso dicionário. Parece significar que umas pessoas são mais fracas do que outras. Carrega todo um acervo negativo, quando, na verdade, não é isso. O dependente tem uma doença. A pessoa desenvolveu, ao longo da sua vida, uma dependência.

Veja, fumar já foi um prazer. Descobriu-se que não, que causa uma série de doenças, estão associando com o câncer. Se fosse só o prazer, acaba parecendo que a pessoa pode simplesmente deixar de lado. Mas não é assim. A dependência significa um sofrimento. A dependência passa a ter um significado importante na vida das pessoas.

Folha - O que o senhor acha de hipóteses sociológicas que apontam fatores para o aumento no número de "vícios"?

Ferraz - Não há contradição: a sociologia me dá um panorama articulado de uma sociedade que precisa, de algum modo, do uso de substâncias que de certa forma mudem sua consciência. O médico vai trabalhar com as pessoas que sofrem desse problema. São duas visões diferentes da mesma realidade.

A pessoa que usa o álcool, por exemplo, pode abusar ou desenvolver dependência. E aí, precisa ser tratado. O psiquiatra é um dos tratadores. Existem várias estratégias para lidar com isso.

Folha - Por que os psiquiatras identificam mais "viciados"?

Ferraz - A sociologia tem suas hipóteses. Por outro lado, há uma melhora diagnóstica muito grande. Um exemplo que eu sempre cito é o das fobias (por exemplo, a dificuldade de sair de casa). Naquela época (começo do século 20), as mulheres tinham muito pouca fobia. Mas por quê? Por que elas não podiam sair de casa; obviamente, não manifestavam a doença. Quando elas saem e entram no mercado de trabalho, há uma explosão das fobias. Elas não existiam? Existiam, mas não eram descobertas. Antes, mesmo as fobias descobertas, não eram bem tratadas. Hoje, elas são bem tratadas. Antes, muitos fóbicos não saiam de casa. Hoje, eles podem sair. Isso é um avanço.

Folha - Podemos falar num "século dos vícios"?

Ferraz - Eu não sou profeta. Não dá pra saber o que vai acontecer nos próximos 100 anos.

Folha - Corre-se o risco de comportamentos prazerosos e repetidos serem classificados como doença?

Ferraz - A medicina não trata de pecados. A medicina trata de desvios graves. Não estamos falando da pessoa que tem uma vida prazerosa no jogo. Estamos falando de uma pessoa que não consegue sair dali, que torna toda sua família infeliz. É jogo patológico, que é uma coisa grave. O psiquiatra não tá preocupado com a vida prazerosa, com o beber prazeroso, com o jogo prazeroso; está preocupado com o grave, que não dá prazer. O psiquiatra não está preocupado com quem transa muito e tem a vida prazerosa.

Veja, a homossexualidade já foi vista como um pecado, uma abominação; depois, uma doença; e depois, deixou de ser uma doença... Enfim, as coisa saem, mudam...

Estamos chamando esses comportamentos que não dão prazer de compulsão? Sim. A pessoa não desfruta da sexualidade, dos prazeres do jogo. A pessoa não consegue sair dali.

Folha - O que caracteriza o compulsivo ou dependente?

Ferraz - Os tipos compulsivos são caracterizados pela perda da liberdade. É a perda do repertório. O dependente vai perdendo o repertório. Vai diminuindo as atividades de sua vida até se ver preso num repertório estreitíssimo da busca de uma droga, de um jogo, de um sexo. O transtorno mental é a perda da liberdade. A pessoa perde as suas opções. A pessoa não consegue sair daquela relação. É como se dissesse: não é a minha vontade. É isso que estamos discutindo. Aí parece que a pessoa é fraca, mas não é isso: ela é dependente.

Folha - Como os dias de hoje "contribuem" para isso?

Ferraz - É evidente que hoje, com maior liberdade sexual, apareçam pessoas com mais compulsões nessa área. E assim em todas as outras áreas. Lembre-se do que eu disse sobre as fobias. Por outro lado, aumenta a capacidade diagnóstica. Antigamente, isso era visto com o signo da igreja e do pecado. Hoje, pode ser visto como um problema e buscar uma solução. Se o jogo fosse proibido, não existiria essa compulsão. Portanto, o meio social modificou, dando possibilidade ao aparecimento, por diversos caminhos. Mas um fator importante foi que o diagnóstico se tornou mais fácil. Isso quer dizer que se muitas doenças passaram a existir, tantas outras simplesmente passaram a ser percebidas.

Folha - A psiquiatria tem sido vista com bons olhos?

Ferraz - Antes, o ser humano tinha muito vergonha de mostrar-se em suas fragilidades. Isso era uma questão que era escondida. Era vista de um modo muito reprimido. Só se chegava à área médica em casos de extrema gravidade. Hoje, as pessoas buscam auxílio no início de seus problemas. Antes, as pessoas tinha muita vergonha, muito medo de transtornos de medo. Agora, o diagnóstico é feito, há um tratamento. Há uma melhora na qualidade de vida.

Folha - Os remédios ajudaram nisso?

Ferraz - Antes, os transtornos de pânico, por exemplo, eram tratados psicologicamente e tinham um desenvolvimento de qualidade ruim. A entrada dos fármacos permitiu que os tratamentos melhorassem. Os pacientes melhoram o suficiente para continuar suas vidas. Os fármacos permitem essa melhora. Mas muitos precisam de auxílio psicológico. A abordagem não pode ser apenas uma. Um quadro de um mal-estar emocional, uma relação conjugal que se estremece, uma relação entre pais e filhos que está tensa: não há fármacos que dêem conta disso. Esses quadros se beneficiam das formas psicoterápicas mais tradicionais. Existem muitas formas de tratamento, e muitas vezes elas precisam vir associadas.

Veja, a questão não é apenas dar ou não remédio. O indivíduo precisa perceber que está em risco. Há aqueles que escolhem, por livre-arbítrio, correr o risco. Há os que querem parar e não conseguem _se conseguir, e um grupo grande consegue, não vai procurar ajuda médica. Antes dos fármacos, as pessoas se livravam dos vícios. Mas muitas pessoas não conseguem. E quando não consegue, vai procurar os psiquiatras. Ou seja, estamos falando daqueles que querem parar e não conseguiram. Esse grupo vem aos médicos. Aí, existem estratégias para tratar. De qualquer forma, é fundamental tratar vários aspectos da vida das pessoas.

Pra primeira fase, o uso de técnicas farmacológicas é muito importante, para que a pessoa consiga reorganizar sua vida, que em geral está completamente transtornada. Mas não é um tratamento biológico, farmacológico. Há vários aspectos conjugados. Por exemplo, ensinar a pessoa a não entrar em risco de ter recaída não é farmacológico. Não há essa relação de exclusão. A psiquiatria moderna é multiprofissional.

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