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07/06/2004
-
06h19
free-lance para a Folha de S.Paulo
Curaçao guarda um tesouro no meio do Caribe: o museu Kurá Hulanda. Construído no local onde funcionava um posto de descarga de escravos, ele relata o holocausto negro das Américas. Dividido em módulos, apresenta de forma didática o tráfico negreiro e o modo de vida nos antigos reinos da África Ocidental.
No século 17, os holandeses deslancharam no negócio de compra, transporte e venda de escravos. A rota do tráfico incluía África, Brasil, Suriname, Curaçao, Cuba e Estados Unidos. Na África, compravam escravos dos reis de Dahomey (atual Benin) e Congo ou os capturavam.
A viagem pelo oceano Atlântico era sofrida. Cada investida trazia cerca de 300 escravos, agrilhoados e comprimidos em aposentos minúsculos. O museu tem uma réplica em tamanho real de uma dessas embarcações.
Jovens e mulheres grávidas tinham preferência. Os primeiros ocupavam pouco espaço; mais deles poderiam ser amontoados no mesmo espaço. Quanto às grávidas, valiam por dois.
Alguns bancos, em funcionamento até hoje, enriqueceram ao vender serviços de seguro. Eles asseguravam os carregamentos contra fugas, ataques de piratas e motins. Morte natural não era coberta. Dessa forma, idosos e doentes eram jogados ao mar e depois reclamados como fugitivos para a obtenção do seguro.
Cerca de um terço da carga era vendida no Brasil e no Suriname, onde os holandeses possuíam colônias. A seguir, desembarcavam em Curaçao, onde os cativos restantes eram treinados para trabalhar na lavoura. Depois eram vendidos, com maior valor, para latifundiários em Cuba e nos EUA.
Após a colheita, muitos preferiam livrar-se dos escravos a mantê-los até o ano seguinte.
Para agregar mais valor, muitos escravos eram treinados como marceneiros por dois ou três anos antes de serem vendidos por altos preços nos EUA, principalmente na Virgínia e na Nova Amsterdã (atual Nova York).
Os índios nativos de Curaçao não foram comumente usados como escravos. Muitos morreram devido a doenças ou se suicidaram. O resultado do genocídio se vê nas ruas, onde poucos transeuntes trazem feições indígenas.
O século de ouro holandês, que incluiu grandes nomes da arte, como Rembrandt e Vermeer, foi, em grande parte, financiado pelos lucros auferidos pela Companhias das Índias Ocidentais, a empresa de grande porte holandesa que levava a cabo o tráfico.
Aos que se chocam com a venda de seres humanos, vale lembrar que naquela época não era universalmente aceita a idéia de que negros tinham alma ou eram humanos. Algo como o fato de os direitos civis de homossexuais não serem universalmente aceitos hoje. No futuro, ao olhar para trás, talvez isso soe tão chocante quanto a própria escravidão.
Ainda hoje, o trabalho escravo continua disseminado. Segundo a Unesco, cerca de 450 mil pessoas em todo o mundo vivem em condições análogas à escravidão, incluindo sudaneses e brasileiros.
A exposição no museu Kurá Hulanda ajuda a lançar um olhar crítico e esclarecedor sobre o passado e sua relação com o presente. Em exposição, encontra-se uma roupa manchada de sangue de membros da Ku Klux Klan, organização norte-americana que prega a supremacia racial branca. O objeto foi adquirido em leilão.
Na entrada do museu, a escultura de bronze "Mama África", do artista local Nel Simon, resume a origem do povo da ilha: de frente, a obra mostra o rosto de uma mulher; de lado, vislumbra-se o continente africano.
Reinos da África ocidental
O módulo sobre os reinos da África ocidental reúne desde objetos do dia-a-dia dos antigos habitantes até réplicas de construções de barro. O visitante pode ver, por exemplo, moedas de bronze gigantes, que mais parecem espadas, usadas nas relações comerciais entre os povos africanos. "Se o produto era grande, como uma vaca, a moeda para comprá-lo também tinha que ser grande", brinca Leo Helms, arquiteto e curador do museu.
Outra atração é uma réplica de casa de barro da tribo Dogon, que se estabeleceu na África ocidental por volta de 1200. Ainda hoje é possível encontrar esse tipo de construção na região. A fachada dessas casas, que na verdade são celeiros, encerra a história familiar de seus donos.
A influência islâmica nos povos africanos está representada por móveis e mosaicos. Observando as junções dos desenhos nos mosaicos, notam-se pequenas imperfeições. Segundo a tradição, só Deus é perfeito; o homem é imperfeito e suas obras também. Assim, erros eram deliberadamente introduzidos nas obras a fim de demonstrar respeito a Deus.
A coleção traz também esculturas de bronze de Benin. É um privilégio ter acesso a essas obras já que o governo africano agora proíbe a venda de tesouros históricos a estrangeiros.
O museu Kurá Hulanda, aberto diariamente das 10h às 17h, recebe cerca de 4.000 visitantes por mês. As entradas custam US$ 6 para adultos e US$ 3 para crianças.
Semanalmente no local são encenadas peças de teatro que procuram relatar com fidelidade o dia-a-dia dos escravos.
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Caribe: Museu Kurá Hulanda descreve o holocausto negro nas Américas
LUCIANO GRÜDTNER BURATTOfree-lance para a Folha de S.Paulo
Curaçao guarda um tesouro no meio do Caribe: o museu Kurá Hulanda. Construído no local onde funcionava um posto de descarga de escravos, ele relata o holocausto negro das Américas. Dividido em módulos, apresenta de forma didática o tráfico negreiro e o modo de vida nos antigos reinos da África Ocidental.
No século 17, os holandeses deslancharam no negócio de compra, transporte e venda de escravos. A rota do tráfico incluía África, Brasil, Suriname, Curaçao, Cuba e Estados Unidos. Na África, compravam escravos dos reis de Dahomey (atual Benin) e Congo ou os capturavam.
A viagem pelo oceano Atlântico era sofrida. Cada investida trazia cerca de 300 escravos, agrilhoados e comprimidos em aposentos minúsculos. O museu tem uma réplica em tamanho real de uma dessas embarcações.
Jovens e mulheres grávidas tinham preferência. Os primeiros ocupavam pouco espaço; mais deles poderiam ser amontoados no mesmo espaço. Quanto às grávidas, valiam por dois.
Alguns bancos, em funcionamento até hoje, enriqueceram ao vender serviços de seguro. Eles asseguravam os carregamentos contra fugas, ataques de piratas e motins. Morte natural não era coberta. Dessa forma, idosos e doentes eram jogados ao mar e depois reclamados como fugitivos para a obtenção do seguro.
Cerca de um terço da carga era vendida no Brasil e no Suriname, onde os holandeses possuíam colônias. A seguir, desembarcavam em Curaçao, onde os cativos restantes eram treinados para trabalhar na lavoura. Depois eram vendidos, com maior valor, para latifundiários em Cuba e nos EUA.
Após a colheita, muitos preferiam livrar-se dos escravos a mantê-los até o ano seguinte.
Para agregar mais valor, muitos escravos eram treinados como marceneiros por dois ou três anos antes de serem vendidos por altos preços nos EUA, principalmente na Virgínia e na Nova Amsterdã (atual Nova York).
Os índios nativos de Curaçao não foram comumente usados como escravos. Muitos morreram devido a doenças ou se suicidaram. O resultado do genocídio se vê nas ruas, onde poucos transeuntes trazem feições indígenas.
O século de ouro holandês, que incluiu grandes nomes da arte, como Rembrandt e Vermeer, foi, em grande parte, financiado pelos lucros auferidos pela Companhias das Índias Ocidentais, a empresa de grande porte holandesa que levava a cabo o tráfico.
Aos que se chocam com a venda de seres humanos, vale lembrar que naquela época não era universalmente aceita a idéia de que negros tinham alma ou eram humanos. Algo como o fato de os direitos civis de homossexuais não serem universalmente aceitos hoje. No futuro, ao olhar para trás, talvez isso soe tão chocante quanto a própria escravidão.
Ainda hoje, o trabalho escravo continua disseminado. Segundo a Unesco, cerca de 450 mil pessoas em todo o mundo vivem em condições análogas à escravidão, incluindo sudaneses e brasileiros.
A exposição no museu Kurá Hulanda ajuda a lançar um olhar crítico e esclarecedor sobre o passado e sua relação com o presente. Em exposição, encontra-se uma roupa manchada de sangue de membros da Ku Klux Klan, organização norte-americana que prega a supremacia racial branca. O objeto foi adquirido em leilão.
Na entrada do museu, a escultura de bronze "Mama África", do artista local Nel Simon, resume a origem do povo da ilha: de frente, a obra mostra o rosto de uma mulher; de lado, vislumbra-se o continente africano.
Reinos da África ocidental
O módulo sobre os reinos da África ocidental reúne desde objetos do dia-a-dia dos antigos habitantes até réplicas de construções de barro. O visitante pode ver, por exemplo, moedas de bronze gigantes, que mais parecem espadas, usadas nas relações comerciais entre os povos africanos. "Se o produto era grande, como uma vaca, a moeda para comprá-lo também tinha que ser grande", brinca Leo Helms, arquiteto e curador do museu.
Outra atração é uma réplica de casa de barro da tribo Dogon, que se estabeleceu na África ocidental por volta de 1200. Ainda hoje é possível encontrar esse tipo de construção na região. A fachada dessas casas, que na verdade são celeiros, encerra a história familiar de seus donos.
A influência islâmica nos povos africanos está representada por móveis e mosaicos. Observando as junções dos desenhos nos mosaicos, notam-se pequenas imperfeições. Segundo a tradição, só Deus é perfeito; o homem é imperfeito e suas obras também. Assim, erros eram deliberadamente introduzidos nas obras a fim de demonstrar respeito a Deus.
A coleção traz também esculturas de bronze de Benin. É um privilégio ter acesso a essas obras já que o governo africano agora proíbe a venda de tesouros históricos a estrangeiros.
O museu Kurá Hulanda, aberto diariamente das 10h às 17h, recebe cerca de 4.000 visitantes por mês. As entradas custam US$ 6 para adultos e US$ 3 para crianças.
Semanalmente no local são encenadas peças de teatro que procuram relatar com fidelidade o dia-a-dia dos escravos.
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