São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2006

MINICONTO

Quem pega o quê

Paulo Bentancur

João, Raul e Antônio
desceram a rua faceiros.
Espiando cada coisa
e a pegando, em pensamento.
O bairro, distraído,
achava-se dono de si.
Cada cão era sem dono,
(por ser de um desconhecido);
tantas bikes esquecidas,
jardins, gente, bolas, tanto
que os olhos ao as tocarem
não podiam resistir.
Qualquer um há de
querer com gula, com sede
fatias da realidade
que a fantasia resolve
morder, beber (ou pensar).
"Esta, azul, é minha!",
disse Raul a uma casa.
João se decepcionou,
mas reagiu de imediato:
"Este é meu, é meu, é meu",
declarou diante de um carro
reluzente e seus pneus.
Antônio, inconformado,
viu Letícia com a mãe,
numa loja envidraçada,
onde compravam pinturas
e roupas. Uma, anéis;
outra com sua sainha.
"Essa garota é minha!",
declarou aos dois amigos
e beijou à distância.
João e Raul só murcharam.
Tinham chegado atrasados
na hora da melhor escolha.
Um não ia pegar chuva,
protegido na casa.
O outro não se atrasaria,
voando no carro novo.
Já, Antônio, seu tesouro,
deu-lhe o calor da escolha
de João e a vertigem
da escolha de Raul
mas o coração, só de um:
de Antônio, o encantado,
que, sem pressa ou ambição,
escolheu ser namorado.

Sobre o autor
Paulo Bentancur é escritor, autor de "A Máquina de Brincar", "As Rimas da Rita" e "O Olhar das Palavras", todos publicados pela editora Bertrand Brasil.


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