São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Pai e filho leram 105 livros em 93

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 02/01/94
O autor do livro "O Desatino da Rapaziada" citado nesta reportagem é de autoria de Humberto Werneck, e não de Ivan Lessa.
Pai e filho leram 105 livros em 93
Aos nove anos, quando todo menino coleciona figurinha, bolinha de gude ou fita de videogame, Alexandre Naime Barbosa decidiu colecionar as edições de Monteiro Lobato dos anos 40, ilustradas por Le Blanc. Chegou aos "Doze Trabalhos de Hércules", descobriu os mitos e, entre nove e 15 anos, juntou 450 volumes sobre mitologia grega. Aos 12, já havia lido "Édipo Rei", de Sófocles.
Alexandre tinha tudo para engrossar aqueles 32% de paulistanos entre 16 e 25 anos que lê "de vez em quando". Tem 18 anos, é de classe média baixa, mora no Tatuapé, antigo bairro operário tomado pela classe média, e vai cursar o 3º ano do 2º grau no Colégio São Bento. Mas, como nas crônicas esportivas de Nelson Rodrigues, há um Imponderável de Almeida em sua formação: o pai, João Pires Barbosa Filho, 46, diz ler quatro horas por dia. "É como uma cachaça. Se eu não ler todo dia dá coceira", conta João. "Acho que o Alexandre herdou o hábito." Herdou em dobro, pelo menos nas férias. Em época de aulas, diz ler duas horas por dia.
Trocando em números: João diz que leu, releu ou consultou para pesquisa 80 livros em 1993; Alexandre leu "uns 25". A biblioteca da dupla tem cinco mil volumes.
Os dois parecem fazer parte de um Brasil em extinção, se é que tal país existiu algum dia. João é administrador no Banespa, cuida sozinho de dois filhos e não tem curso universitário. O imponderável de Almeida de João também foi seu pai, um professor de Catanduva (SP) que lia o jornal da primeira à última página e ensinava-o que não se diz "bangalô" e sim "bangalou", esticando o "ou" como os ingleses.
João usufrui da herança que deixou a Alexandre. Foi reler "Os Lusíadas" e o filho fazia as vezes de "um microcomputador que sabe tudo de mitologia", como diz o pai. "Quem são as tágides?", perguntava. "São as ninfas do rio Tejo", devolvia o filho.
Ao contrário do clichê, Alexandre namora, joga vôlei, futebol (é são-paulino) e vê TV –diz adorar "Roda Viva" e "Ensaio", da Cultura. Quer ser médico.
Só chegou à literatura brasileira depois de passar pela mitologia greco-romana e pelas tragédias gregas. Começou por Érico Veríssimo –os cinco volumes de "O Tempo e o Vento". No terceiro, diz ter ficado tão encantado com o personagem Floriano que decidiu ler tudo o que ele lia. Aos 15 anos, passou por "Madame Bova ry", "Educação Sentimental" e "Salambô", todos de Flaubert, "Germinal", de Zola, e dois volumes dos 96 de "A Comédia Humana", de Balzac.
Ano passado, Alexandre começou a ler poesia. Não barateou na iniciação. Começou por "O Guardador de Rebanhos", de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Leu "Libertinagem" e "A Cinza das Horas", de Manuel Bandeira, e cruzou os seis volumes de memórias de Pedro Nava.
Por indicação de um professor, arriscou dois autores contemporâneos: uma antologia e Bukowski e "O Desatino da Rapaziada", de Ivan Lessa. "Prefiro os românticos. Estou acostumado à literatura mais clássica. Essa linguagem mais crua e mais suja me incomoda", reclama Alexandre.
A inclinação clássica vem do pai, que pegou a época em que se ensinava latim nas escolas. O máximo que João suporta são os modernistas. Tanto que enfileirou uns 15 livros de Mário de Andrade –da ficção à correspondência– entre os 80 livros que diz ter lido em 1993. Não tem exatamente um método, apesar de fichar todos os livros que lê. Vai de Mário de Andrade a Gilberto Freyre, salta para Proust e vasculha relatos de viajantes. Como o filho, também lê em inglês.
João tem uma biblioteca de bibliófilo, com dezenas de primeiras edições do século 19: "Brazil and the Brazilians", de Daniel Kidder, "Travels in the Interior of Brazil", de George Gardner, e "Minha Formação", de Joaquim Nabuco ("Não confunda com 'Minha Formação no Recife', de Gilberto Amado", esnoba o pai).
A biblioteca foi comprada em sebos. Quando precisa recorrer a uma livraria, João é do tipo que chora descontos e, dependendo do preço, compra a prestação. Não se é bibliófilo no Tatuapé sem regatear no preço.

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