São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Fujimori e Ieltsin criam 'síndrome do plebiscito'

J. A. GUILHON ALBUQUERQUE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois dirigentes políticos ganharam valor simbólico neste fim de século: Alberto Fujimori, o presidente do Peru que protagonizou o primeiro golpe bem-sucedido nas novas democracias latino-americanas, é evocado confusamente toda vez que surge alguma ameaça de ruptura institucional. Boris Ieltsin representa, para o bem e para o mal, toda a instabilidade e decadência do pós-socialismo.
Creio que poderíamos chamar de "síndrome de Fujibóris" a fusão desses dois símbolos na crença de que a instabilidade crônica dos regimes surgidos na recente onda de democratização, tanto no Leste quanto no Oeste, desaguaria quase fatalmente em lideranças plebiscitárias governando por cima das instituições, com apoio popular e militar.
No entanto, em detrimento da inevitabilidade da "síndrome", é preciso admitir que a sombra ameaçadora de Fujimori é imensamente maior do que sua real envergadura. Um golpe presidencial bem-sucedido no estilo Fujimori se revela uma exceção, quando se consideram as condições reais dos diversos países. Presidentes eleitos com grande apelo populista, que adotam programas impopulares que acabam redundando em ingovernabilidade, são quase um corolário do plebiscitarismo presidencialista em vigor nos nossos países.
Contrastes
Em vez de encabeçar um golpe bem-sucedido à la Fujimori, Collor e Andrés Pérez foram derrubados mediante ações constitucionais de impeachment, independentemente do fato de que um, o brasileiro, era um desconhecido arrivista e o outro, pelo contrário, um ex-presidente, membro atuante da elite governamental.
Menem, um outsider como Collor e Fujimori, não teve o destino de um nem de outro, mas obteve um equilíbrio estabilizador, baseado no apoio partidário que nunca lhe faltou, mesmo nos momentos em que as acusações contra ele chegaram a níveis comparáveis aos que derrubaram Collor e Pérez. Já Durán Ballén, um político tradicional como Andrés Pérez –o que o distingue de Fujimori, Collor e Menem–, conhecido por suas posições conservadoras –o que os separa de todos os demais–, tem permanecido incólume aos torvelinhos políticos tão comuns em seu país.
Mas o caso mais desafiador a uma pretendida síndrome de Fujibóris é o da Bolívia: apesar das imensas pressões desencadeadas pela adoção, no governo anterior, de medidas de ajuste tão ou mais duras do que as que inviabilizaram desde o início os governos constitucionais da Venezuela e do Peru, o presidente Paz Zamora, apesar de ser simultaneamente um membro da elite e oriundo de movimento de extrema esquerda, além de dever sua eleição a um pacto com o ex-ditador militar Hugo Bánzer, não apenas deu sequência ao programa de liberalização da economia, mas deu posse a um sucessor constitucional. A série de três presidentes eleitos constitucionalmente não é apenas inédita na Bolívia, mas não se repete no Brasil desde 1922 e, se tudo correr bem, só poderá concretizar-se em 2005.
Tampouco Boris Ieltsin pode ser aceito como produto da fatalidade do pós-socialismo. Ele é mais precisamente uma decorrência previsível do plebiscitarismo adotado por Gorbatchov, num momento em que sua relação carismática com a população e a legitimidade internacional conquistada aos olhos do Ocidente eram os únicos trunfos passíveis de contrabalançar a legalidade soviética então em vigor, baseada na intricação entre o partido, o governo e o Exército Vermelho.
Fanfarrões
Ao invés de dizer que apenas personalidades ou estilos plebiscitários coo o de Ieltsin podem ser bem-sucedidos no pós-socialismo, seria mais rigoroso dizer que a era Gorbatchov inaugurou um processo político que seleciona lideranças com base na fanfarronice, como se pode muito bem observar na plêiade de pró-homens russos da estirpe do próprio Ieltsin, do líder oposicionista Ruslan Khasbulatov e, agora, de Jirinovski.
O mesmo não ocorre em países do ex-império soviético que não tomaram o caminho plebiscitário da Rússia, como a Hungria e a República Tcheca. A Polônia, que ficou a meio caminho, contrabalançando o plebiscitarismo presidencialista com um governo de gabinete, tem mal ou bem sobrevivido à personalidade bonapartista de Lech Walesa.
Podemos concluir que a síndrome de Fujibóris não se explica nem por sua origem, nem por seus efeitos. Situações semelhantes deram origem a soluções diferentes tanto na América Latina como nos países do socialismo real. Por outro lado, muitos regimes sobreviveram às crises provocadas por reformas econômicas sem apelar para o estilo Fujibóris.
Uma coisa, entretanto, é compartilhada por Peru e Rússia e constitui um poderoso fator externo de estabilização, concorrendo para mobilizar apoio político, ajuda econômica e solidariedade militar para qualquer regime que mantenha a ordem: tais regimes oferecem um risco menor do que o caos interno, que representaria uma ameaça à ordem internacional ou à paz mundial. O Sendero Luminoso, no Peru, e o arsenal atômico na Rússia são, nesse sentido, os grandes parteiros da síndrome de Fujibóris.

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE, 53, é professor titular da USP e coordenador do Programa de Relações Internacionais. Foi professor visitante da cátedra Jacques Leclerq, na Université Catholique de Louvain, e na Georgetown University.

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