São Paulo, quinta-feira, 6 de janeiro de 1994
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A hora do grande pacto

JOAQUIM FRANCISCO

A crise brasileira atual, por sobre ser econômica e social, é talvez primariamente uma crise institucional que envolve valores, os jurídicos em particular e os sociais em geral.
A hora brasileira –com o impedimento de Collor, a revisão constitucional, a cassação de deputados, a CPI do Orçamento– traz consigo não uma onda de um aparente moralismo, mas a revolta do povo contra a conduta de líderes dissociados do padrão ético consensualizado e, consequente, também contra as leis, mesmo as constitucionais, que se mostram insuficientes para a implantação imperativa de condutas eticamente aceitáveis.
Nesse quadro, a CPI do Orçamento deve ser vista como um passo importantíssimo, conquanto não suficiente, de um processo crítico. Onde os inocentes são inocentados e os culpados punidos. Um processo que objetiva aquele reencontro entre o poder e o "espírito do povo". Veja-se: a CPI não é instrumento de inquisição, nem deve ser espetáculo para a satisfação de sanhas individuais ou coletivas. No contexto do amplo processo de reabilitação ética nacional, a CPI não é um objetivo, mas sim uma meta. E, enquanto meta, é incidente da caminhada, passo a ser cumprido em busca do objetivo.
Não se pense que o clamor das ruas –manifestado diretamente pelo povo e suas organizações, bem como pelos seus legítimos representantes– é apenas um grito de revolta contra "os outros". O povo, nos seus segmentos conscientes, alia à sua capacidade de revolta também a sua capacidade de autocrítica. Mas quer ver o exemplo dos "poderosos", como o filho quer ver o pai o exemplo, para orgulhar-se e orientar-se.
O povo quer mudança profunda, posto que não crê (as pesquisas o demonstram) nas mudanças paliativas, pontuais, esporádicas, apenas formais, que servem para camuflar a manutenção do mesmo estado de coisas. Talvez não saiba exatamente as causas do desencontro ético acima apontado, e certamente não sabe a profundeza e extensão desse desencontro. Mas sabe, por intuição, por sentir o efeito do desencontro e por ser informado sobre a parte visível do iceberg, que as coisas carecem de mudanças, as leis precisam evoluir, as condutas modificarem-se, os desvios serem punidos, o Estado (pelo Executivo, o Legislativo e o Judiciário) ir ao encontro dos anseios do cidadão.
Temo que não se tire dessa hora toda a lição que a crise enseja. Temo que os políticos –menos por dolo pessoal do que por culpa de nossa própria formação histórico-cultural– se satisfaçam apenas com cassações de mandatos, porque este pouco lhes pareça o suficiente.
Haverá resistências às mudanças, apesar de, neste momento se estar delineando um projeto de ética nacional que é, conforme me parece, incontestável, projeto prioritário e mesmo condicionante de outros projetos de natureza econômica e social. Haverá resistências. Mesmo porque, no pluralismo democrático, a divergência é corolário da liberdade.
Tais resistências, se consolidarão em blocos independentes, mas, no essencial, harmônicos, dentro do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Porque não é fácil refazer perspectivas, adaptar retinas acostumadas, renunciar às rotinas.
Não é fácil reconhecer que a corrupção ilegal é aliada de uma outra forma de corrupção que, ao amparo da lei, inviabiliza a satisfação de direitos humanos fundamentais (vide nossos 32 milhões de miseráveis), burocratiza a ação estatal, permite e incentiva a injustiça distributiva, eterniza as disparidades interregionais e consagra a permanência do status quo.
A "descoberta" da corrupção (especialmente por via das CPIs –mérito do Legislativo) parece abrir horizontes novos para a redenção nacional, se a entendermos como um sinal de ruptura com o farisaísmo do "Estado espetáculo". É preciso institucionalizar, em todos os níveis, o espírito da ética pública. Não o espírito inquisitorial, com o objetivo exclusivo de punir, mesmo o inocente, mas com o perseverante propósito de restaurar a base ética do Estado. É preciso dar sequência e consequência ao espírito de restauração ético-político que esta hora nacional ensina e exige.
Eis, pois, que se delineia um luminoso projeto. E seria frustrante que ele ficasse inconcluso, que apenas algumas metas importantes fossem cumpridas, sem que conseguíssemos tirar da crise lições de futuro, para a tarefa de imediata construção democrática. Não progredir seria quase tão frustrante quanto regredir para um regime não democrático que se quisesse instalar em nome dos valores que não conseguíssemos impor.
Não acredito na possibilidade política dessa regressão e torço para que a pedagogia da crise seja suficiente, se não para erradicar do país a corrupção, pelo menos para miminizá-la e puni-la eficazmente, sem traumas. A hora é de acreditar nisso e operacionalizar essa crença. A hora é de um grande pacto.

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