São Paulo, sábado, 8 de janeiro de 1994
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Mais agricultura, menos fome

ROBERTO RODRIGUES

A sociedade brasileira envolveu-se de corpo e alma na extraordinária campanha contra a fome e a miséria liderada pelo Betinho. Este engajamento é uma excelente oportunidade para se investigar e questionar as causas da miséria e da fome e combatê-las em seu nascedouro. Existem alguns pontos que precisam ser claramente examinados.
A primeira pergunta é: por que os agricultores brasileiros não produzem o suficiente para combater a fome? A resposta é uma aparente surpresa. Porque, ao contrário do que pode parecer, o setor rural no Brasil produz mais do que o suficiente para abastecer - e bem - toda a população brasileira, além de gerar excedentes exportáveis.
Assim, hoje produzimos, em números gerais:
- 65,5 milhões de toneladas de grãos alimentícios (arroz, feijão, milho, soja, trigo, amendoim);
-19 milhões de toneladas de produtos pecuários (carnes e leite);
- 56 milhões de toneladas de outros alimentos (açúcar, mandioca, laranja, banana, cacau, tomate etc).
Isto soma 140 milhões de toneladas. E aí não estão incluídos hortifrutigranjeiros (como ovos, por exemplo), pescado e café. É bem verdade que exportamos 14 milhões de toneladas destes alimentos, como soja e derivados, suco de laranja, carnes e açúcar. Mas devemos também importar este ano quase 10 milhões de toneladas de grãos (arroz, feijão, trigo, milho) e leite.
Portanto, a agricultura brasileira já produz hoje o equivalente a 930 quilos de alimentos "per capita" por ano. Isto dá um consumo estimado de 2,8 quilos por habitante/dia. Seria o suficiente para todos os brasileiros passarem muito bem, se todos comessem a mesma quantidade.
E, adicionalmente, se houvesse estímulo econômico, os produtores rurais poderiam ampliar a produção de grãos em mais de 20 milhões de toneladas sem aumentar um único hectare de cultivo, mas apenas usando a tecnologia já disponível nos órgãos de pesquisa. E muito mais ainda usando novas tecnologias em fase de teste e ampliando também a área de plantio.
Por outro lado, enfrentando toda série de percalços, os agricultores brasileiros incorporaram tecnologia ao longo dos últimos anos, de forma que sairam de um patamar de 1.400 kg/ha (grãos) em 1981, para 1.700 kg/ha em 1991. Um grande triunfo, sem dúvida (mais de 20%), cujo "prêmio" foi a queda do valor da produção, no mesmo período. de US$ 16 bilhões para US$ 8 bilhões.
O quadro é, portanto, chocantemente paradoxal. Apesar do sucateamento dos intrumentos de política agrícola (crédito, preços mínimos, seguro, etc), a agricultura brasileira aumenta a produtividade, garante produção para alimentar todos os brasileiros e perde drasticamente sua renda. Isto explica a redução do número de agricultores, uma verdadeira expulsão em massa de pequenos produtores que, desestimulados, vão inchar a periferia das cidades, gerando todo tipo de demanda social e de infra-estrutura.
Na outra ponta, o consumo cai e cresce o número de agricultores marginalizados no mercado. Dados do IPEA (Isntituto de Pesquisa Econômica Aplicada) demonstram que 50% dos consumidores brasileiros têm poder aquisitivo correspondente a 15% do total do poder aquisitivo do país.
Uma das consequências deste estado de coisas absurdo é o desperdício de alimentos. Todos os anos são anunciadas perdas monumentais de grãos que apodrecem em armazéns e se perdem em colheitas, transportes, embalagem e distribuição, sem falar nas perdas de hortaliças e frutas. Existem perdas da ordem de US$ 5 bilhões por ano, algo em torno de 1,5% do PIB brasileiro. É o tamanho do nosso "DIB" (desperdício interno bruto).
Como conciliar estas coisas ?
Está óbvio que o fator determinante da fome não é a produção agrícola, mas a péssima distribuição de renda do país. Portanto o combate à fome e à miséria só será definitivo e eficiente quando distribuirmos melhor a renda nacional, no que todos concordam, desde que se distribua a renda "alheia".
O que, de qualquer forma, demanda importantes mudanças nas políticas fiscal, tributária e de investimentos públicos. Mas não podemos ficar esperando por isto. Este ano já vamos importar 5 milhões de toneladas de trigo, quando em 1989 fomos quase autosuficientes. Milhares de agricultores estão deixando a atividade, por falta de perspectivas, enquanto cresce o contingente de famintos.
Como resolver isto e logo? A resposta é simples e foi usada em outros países do mundo. Chama-se subsídio à agricultura. No Brasil, esta palavra parece ofensiva.
Se, desembarcando em qualquer país da Europa Ocidental, um brasileiro perguntar ao taxista se vale a pena subsidiar o leite, a resposta é imediata: "claro que sim e por duas razões: a primeira, para garantir a produção do leite que meus filhos consomem; a segunda, para que o produtor fique lá na terra, na sua atividade e não venha para a cidade disputar o meu emprego".E assim se ouve de bancários, balconistas e garçons.
Aqui, não.
Desde o governante mais esclarecido e elevado até o mais miserável dos cidadãos, todos acham que subsídio à agricultura é um inaceitável favor. Os agricultores são tidos como incompetentes, indolentes, exploradores. Exaurem sua capacidade de investimento para incorporar tecnologia, e assim poderem sobreviver, e são chamados de imcompetentes! Transferem renda há 40 anos para o setor urbano e são exploradores! Isto sem se falar na competição internacional predatória e desleal contra países que subsidiam espetacularmente, enquanto o Brail não cansa de taxar seus agricultores (agora mesmo, o Confaz aumentou a tributação do ICMS da cesta básica para 12% , onerando ainda mais o consumo).
É preciso acabar com esta estúpida postura, até porque o mercado mundial de produtos agrícolas sofre todo tipo de protecionismo e intervenções, muitas delas hoje "legalizadas" pelo Gatt.
É preciso subsidiar o consumo de alimentos. É uma idéia simples e um processo fácil: o consumidor pagará, pelos produtos básicos de alimentação (arroz, feijão, leite, ovos, farinha de mandioca, óleo de soja) um preço menor do que o recebido pelos produtores. Assim o consumo cresce imediatamente, enquanto o agricultor recebe preço remunerado e estimulante para investir na atividade.
O eixo da economia começará a rodar; aumentará a demanda pelos produtos subsidiados; será preciso plantar mais; crescerá assim a necessidade de sementes, fertilizantes, defensivos, calcário; crescerá também a necessidade de caminhões para transportar o que se produzir mais. Serão necessários mais armazéns e silos, melhores estradas. Os serviços de crédito, de seguro, de comunicação e informação serão ampliados. Com isto, crescerá espetacularmente a necessidade de novos empregos diretos e indiretos. A massa salarial terá maior participação no PIB. O comércio, estimulado por novos empregados e portanto novos consumidores, venderá mais e precisará aumentar suas encomendas à indústria. Em pouco tempo, toda a economia estará funcionando a pleno vapor. E o crescimento da agricultura, com mais tecnologia, terminará por produzir a custos menores. Acabará o desperdício, porque o giro será muito mais rápido. E, ao final, o subsídio poderá ser retirado paulatinamente.
Isto não é poesia, nem mágica. Já foi feito antes por países que não eram ricos nem grandes: ficaram ricos e grandes porque o fizeram. Basta ter a decisão política de acabar com a fome e a miséria combatendo suas causas.

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