São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Menos impostos e menos negócios da China

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O luxuoso bairro paulistano de Alphaville foi construído há alguns anos –em terras pertencentes à União. Nem mesmo a espécie de "aluguel" previsto para esses casos foi paga, ao longo dos anos, pelos felizes e prósperos "donos" de casas erguidas na região. Alphaville não é uma raridade. Há milhões de casos iguais. Milhões? É. Milhões. A União é dona de nada menos de 2,5 milhões de imóveis, cadastrados, de todos os tipos e tamanhos. Fazendas resultantes de terras devolutas e ocupadas por construtoras; faixas de terras de custo milionário invadidas por milionários ao longo das praias ou em ilhas; terrenos, prédios e casas recebidas na Justiça como pagamento de dívidas... São 2,5 milhões de imóveis, que deveriam render trilhões e trilhões de cruzeiros, se vendidos ou quando invadidos –ou "gentilmente cedidos"– pagassem a "taxa de ocupação" prevista em lei. Não pagam.
Por quê? Há uma resposta fácil, neste Brasil dominado pelo festival de mentiras detinado a impedir que os negócios da China acabem. A resposta imediata e aparentemente correta é esta: o Estado, o governo, não sabe administrar nem o seu patrimônio. Mas, se esse chavão for deixado de lado, a conclusão é outra. Há grandes grupos, gente poderosa, se apoderando daqueles trilhões de cruzeiros que na verdade pertencem à União. Isto é, pertencem à sociedade brasileira. Poderiam ser usados para reduzir os problemas sociais e reduzir a carga de impostos da classe média e do povão brasileiro. Em resumo: dizer que o Estado não administra bem é um golpe para enganar a sociedade. Quem não administra, quem protege os poderosos interesses, são os ministros e governantes coniventes com esses assaltos contra o patrimônio coletivo.
O escândalo é maior do que se pensa. Já antes da posse, uma das principais fontes de renda previstas pelo governo Collor era exatamente a "reforma patrimonial", isto é, a administração correta desses milhões de imóveis. O problema era conhecido. Identificado. Por que nada foi feito? E por que nada está sendo feito mesmo pela equipe de FHC?
O ministro da Fazenda diz a todo momento que aceita renunciar aos aumentos de impostos e cortes propostos em seu plano se houver sugestões para arrecadar os recursos necessários. Seguem-se, então, um modesto lembrete para a questão dos imóveis e mais outros cinco ou seis lembretes viáveis:
Atenção: é preciso evitar que ministros e assessores, atuais ou futuros, repitam o comportamento criminoso de antecessores, isto é, engavetem as mudanças ou "façam corpo mole" para implantá-las. A advertência, como se verá a seguir, é justificada pela experiência. Assim, todas as medidas deveriam ser aprovadas pelo Congresso, fixando-se também um cronograma de prazos para execução das diversas etapas. Eis os lembretes:
Imóveis –a União tem obviamente uma divisão de patrimônio, incumbida de administrá-lo. Não pode agir. É massacrada com a falta de verbas, pelos ministros da Fazenda. Por quê? Mistério? No ano passado, 1993, recebeu uma ninharia miserenta. O funcionário responsável fez o que podia: segundo a "Gazeta Mercantil", comprou um (unidade) microcomputador, desses que custam menos de US$ 1.000. Pois é. São 2,5 milhões de imóveis capazes de render trilhões. Mas os ministros ... A divisão precisa de verbas, gente, equipamentos. Já. Amanhã.
Brincadeira –no último dia do ano, a equipe FHC enviou a revisão do Orçamento ao Congresso, acompanhada de propostas de aumento de impostos etc. A sorte das equipes ministeriais (presente, passadas e futuras) é que ninguém mais lê íntegras de projetos no Brasil. Dá pra fazer toda manipulação que se quiser, né? As receitas estão completamente manipuladas –para baixo, claro. Mas o engraçado, mesmo, é que a mensagem do ministro destaca os dois avanços "mais importantes" para o aumento da arrecadação em 1993. São eles, segundo o texto, o recadastramento dos contribuintes e a obrigatoriedade de os bancos fornecerem as listas de clientes. Importante, não? Só que o ministro e seus assessores se esqueceram de que o recadastramento dos contribuintes mal começou, durou um mês –e foi suspenso. Por quê? Porque os computadores que prestam serviço ao "leão", pertencentes ao Serpro, pifaram. O Serpro está sucateado graças ao corte de verbas de ministros ("ex" e atuais), que falam alegremente na necessidade de "enxugar" a máquina do governo. Não há recadastramento sem reequipar o Serpro. E tampouco haverá condições de utilizar as listas dos bancos, à cata de sonegadores. Lembrete três, portanto: reequipar o Serpro. Sem brincadeiras, né?
Amnésia –o ministro e seus assessores se esqueceram de mais uma coisinha. O Programa de Ação Imediata que a equipe FHC divulgou em meados do ano demonstrava competência, em um ponto. Como assim? No Brasil, diante dos juros estratosféricos (defendidos pelos ministros da Fazenda e assessores/banqueiros), sabe-se que é vantagem as empresas deixarem de pagar os impostos e aplicarem no mercado financeiro. Mais tarde, quando a Justiça ordena o recolhimento, o sonegador já ganhou mais em juros do que vai pagar ao Tesouro. Ao tomar posse, a equipe sabia disso. Tanto, que propunha a criação de uma espécie de "multa extra" destinada exatamente a anular, compensar, o lucro ganho pelas empresas sonegadoras com os juros. Não é que o ministro e assessores se esqueceram disso? Não só a proposta morreu há meses em uma gaveta qualquer. Ainda por cima, o ministro reduziu multas, extinguiu as prestações iniciais de 15% a 20% e aumentou os prazos de parcelamento dos impostos sonegados. Aumentou os ganhos dos sonegadores às custas do Tesouro. Como se sabe, amnésia é doença contagiosa que ataca os "progressistas" que chegam ao poder. Estadual e federal.
Filosofagem –construir sofismas virou um dos passa-tempos prediletos dos ministros da Fazenda no Brasil. O parcelamento da Cofins em 80 meses, criticado nesta coluna, recebeu uma justificativa ministerial. Como as empresas não haviam recolhido o imposto ao longo de 19 meses e a alíquota é de 2% do faturamento, se toda a dívida fosse cobrada de uma vez, ela representaria 38% do faturamento. "Isso quebraria as empresas", dizem os competentes assessores. É mesmo? Joguinho duro esse de fugir à responsabilidade com sofismas. Ninguém defendeu que as empresas pagassem tudo de uma vez. Há muitos meses, defende-se nesta coluna um conceito esquecido pelos ministros e seus "assessores consultores dos sonegadores" (prove-se que não o são ...). O conceito da "capacidade contributiva". O importante é receber. Ninguém quer quebrar empresas. O parcelamento –defendeu-se sempre, aqui– deveria obedecer o mesmo critério da rolagem da dívida dos Estados e municípios. As prestações deveriam representar um percentual, de 3% por exemplo, do faturamento das empresas. Com a recuperação da economia (que já houve) e crescimento do faturamento (idem) as prestações também aumentarão –e o Tesouro receberá seu dinheiro mais depressa. Sem sacrificar as empresas. Esse critério tem que ser adotado para todas as dívidas: à Previdência, FGTS, empréstimos bancários na CEF, BB, BNDES etc.
Sonegação –a produção industrial cresceu 12% em 1993, a arrecadação do IPI apenas 2% a 3%. Na indústria automobilística, crescimento recorde de 45% e aumento de 4% na arrecadação do IPI. Não cheira à sonegação desenfreada, de trilhões de cruzeiros? Será que a melhor opção para arrecadar é mesmo correr atrás da "nota fiscal" de pequenos comerciantes? Interessante, né?
Contratações –a Advocacia da União está com seis advogados. Meia dúzia. Fala-se em contratar advogados particulares para defender os interesses do governo em ações na Justiça. A experiência já foi feita. Um doce para quem adivinhar o que aconteceu. Suborno? Corrupção?
Pessoal –Receita, INSS, Ministério do Trabalho também precisam contratar fiscais para combater a sonegação. Ponto.
É tudo simples. Dá pra fazer perfeitamente, entre um sorriso e outro. Ou entre um sorriso e uma recusa de entrevista a um jornalista. "Desagradável".

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