São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Teólogos relêem o socialismo

FERNANDO MOLICA
DA SUCURSAL DO RIO

Os ruídos da queda dos regimes socialistas do leste europeu ressoam nos mais recentes livros de Leonardo Boff, 54, e Frei Betto, 49, dois dos maiores defensores da compatibilidade do paraíso anunciado por Jesus Cristo com a utopia prometida por Karl Marx.
Os teólogos da libertação confirmam elogios e revelam e/ou aprofundam críticas ao socialismo –Boff chega a comparar a estrutura de partido único com a da Igreja Católica. Ambos, porém, renovam a confiança em um projeto de sociedade socialista.
Uma nova sociedade que, para Boff, incorporaria elementos ecológicos e espirituais –tese que desenvolve em seu 57.º livro, "Ecologia, Mundialização, Espiritualidade". Em desligamento do sacerdócio, Boff dedica um capítulo do livro às relações entre sexualidade e espiritualidade. No mês passado, ele revelou manter há 12 anos um relacionamento amoroso com a teóloga Márcia Miranda.
Betto, em "O Paraíso Perdido - nos Bastidores do Socialismo", seu 28.º livro, lista outro argumento para sua fé socialista: o aritmético. "Não podemos multiplicar os recursos. Ou os partilharmos ou aceitamos que a vida de uns poucos depende da morte de uns tantos", afirmou. O livro é um diário das viagens que fez ao longo de 13 anos a países socialistas. A seguir, trechos de entrevista concedida por ambos à Folha.
*
Folha - O paraíso socialista está perdido?
Frei Betto - Acabou o socialismo como um paraíso. O livro é um resgate do socialismo como esperança para a maioria da humanidade, despindo-o de seu caráter mítico e mostrando os erros cometidos em sua construção.
Folha - O sr. não acha que parte da esquerda contribuiu para este caráter mítico ao evitar críticas ao socialismo? O sr. dizia que só fazia cíticas a Cuba com seus amigos.
Betto - Meu receio estava relacionado ao trabalho que eu exercia, não era turista nestes países. Sempre tive receio de que uma frase mal lançada na imprensa viesse a prejudicar meu trabalho.
Folha - E o sr. (Boff), o que acha disto? Ao voltar de uma viagem à URSS, em 1987, o sr. fez muitos elogios ao que viu.
Leonardo Boff - Uma coisa é visitar a URSS e Cuba a partir do Primeiro Mundo, onde todo mundo está bem situado, tem casa, tem carro, tudo. Outra coisa é fazer isto vindo do Terceiro Mundo, onde há multidões de crianças no meio da rua. Mas não deixamos de fazer críticas. Estas foram feitas na Academia de Ciências de Moscou, na Letônia, na Lituânia. Afirmamos que eles haviam feito a revolução da fome, mas não a da liberdade. A questão era a seguinte: por que só o partido deve construir o socialismo? Por que não as igrejas, os estudantes, os sindicatos?
Folha - E em relação às reformas que estão sendo feitas em Cuba?
Betto - Acho que Cuba é um tapa na cara de nós, latino-americanos, e cristãos latino-americanos, que julgamos viver em plena democracia. É o único país da AL onde as grandes questões sociais foram equacionadas. E, se não foram melhor equacionadas, não é por culpa do socialismo cubano, é por culpa do bloqueio americano e pelo fim da União Soviética. Cuba tem lançado mão de recursos que considero males necessários, como o turismo, para poder sobreviver. Estes males introduzem aspectos do capitalismo que são nocivos a um projeto de socialismo. É uma contradição que Cuba tem que suportar para sobreviver ao bloqueio.
Folha - Mas estas críticas feitas por frei Leonardo em relação à URSS seriam válidas também para Cuba?
Betto - O meu modelo de socialismo não é do de partido único, mas nele também não há lugar para um partido que queira, legalmente, introduzir a exploração do homem pelo homem. Sou pluripartidário, desde que os programas de partidos estejam voltados para o bem comum. Não quero que o futuro de Cuba seja o presente do Brasil, da Guatemala, de Honduras. Vide o que acontece hoje no leste europeu. Por que os comunistas ganharam as eleições na Lituânia e na Polônia? Por que Boris Ieltsin tem que governar como ditador? Porque agora as pessoas se dão conta que a tal liberdade sonhada era uma farsa, o capitalismo introduz males que eles não conheciam, como a inflação, o pagar escola para o filho, o pagar por uma casa.
Boff - Cuba nos libertou do subdesenvolvimento, da fome, da ignorância, da doença, da falta da escola. Não nos libertou em tudo para uma liberdade de expressão, para um pluralismo partidário, para outras formas de socialismo. Este lado é insuficiente, nós temos dito isto às instâncias de diálogo em Cuba. Eles sempre dizem que não praticam o socialismo que querem, mas o que podem. Isto, pelas condições impostas ao país. Há vários modelos possíveis: lá ficou o modelo do partido único, que impõe limites à liberdade de expressão do ser humano.
Folha - Em seu livro que o sr. trata da sexualidade e da espiritualidade?
Boff - Faço isto em uma perspectiva radical, que tenta ver a sexualidade como a espiritualidade, como um fenômeno religioso, corrente, como resultado de algo mais prévio. É a energia vital que tem uma dimensão cósmica, que aparece no ser humano como capacidade de comunicação, de relação com todas as coisas, como o exercício de uma liberdade fundamental. O ser humano é espírito, não tem espírito. A sexualidade, da mesma forma. O problema da nossa cultura é que ela reduziu a sexualidade à genitalidade. A tradição de setores hegemônicos do cristianismo trata o corpo com suspeita, como algo ligado à tentação e ao pecado. Já o cristianismo mais originário é profundamente positivo face ao mundo: Jesus fez milagres, multiplicou o pão e o peixe, transformou a água em vinho –não o vinho em água– chegou a ser confundido com comilões e beberrões. O cristianismo afirma a ressurreição da carne e não o recalque da carne. E afirma a encarnação de Deus, que assume a carne. Esta dimensão se perdeu e deve ser recuperada. Não existe corpo sem alma nem alma sem corpo.
Folha - A Teologia da Libertação não privilegiou esta discussão. Por quê?
Betto - É um fenômeno pouco estrutural, no sentido que a cultura européia e a norte-americana são mais voltadas para o privado, para o indivíduo. Durante estes últimos 30 anos em que se elaborou a TL o acento na mudança na sociedade sempre foi muito maior do que o acento na mudança da própria Igreja. Daí a questão social predominar e não a questão da moral, da sexualidade.
Folha - Este tema poderia ser mais abordado pela TL?
Betto - Isto é urgente na Igreja em geral. Na Igreja institucional estamos vivendo uma contradição terrível. Há todo um avanço teológico e o único setor que não avança é o da teologia moral.

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