São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chico Buarque de Hollanda está de volta, em CD, videoclip e show. Depois de cinco anos sem gravar –o que não quer dizer sem produzir– e de ter se aventurado pelas águas da literatura, com "Estorvo", um romance de qualidade surpreendente, Chico retorna ao samba com o disco "Paratodos". A volta tem um sabor de reencontro do músico com o seu público e assinala um momento de maturidade de um artista que sempre soube conciliar tradição e inovação, erudição e cultura popular, trabalho cerebral e intuição.
Nesta entrevista, realizada em duas etapas, na casa do compositor, no Rio, ele fala sobre sua formação literária, sobre suas ligações com a música e sobre sua família. Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, autor do clássico "Raízes do Brasil", Chico comenta a relação com o pai e revela a existência de um irmão alemão, por ele desconhecido.
Dizendo-se um "homem cordial" (conceito cunhado por seu pai), Chico também fala sobre seus amigos, seus parceiros e, apesar da timidez, não evitou temas delicados, como vícios e manias. Quase um cinquentão, Chico comemora 30 anos de carreira em plena forma e diz que hoje se sente mais leve do que na época das cobranças políticas.

*
Folha - Começando por sua formação literária: o que você leu quando jovem? Que autores foram decisivos? Você lê bem em outras línguas?
Chico Buarque de Hollanda- Eu leio bem francês, italiano e espanhol. Quando criança, falava italiano e inglês porque morei em Roma durante dois anos e estudava em escola americana. Com 10 anos de idade eu falava italiano e inglês correntemente. Eu tenho até hoje uma carta em que uma professora americana, ao despedir-se de mim, disse que um dia ainda leria um romance "written by Francisco Buarque de Hollanda". Depois parei e esqueci ambos. O italiano eu retomei quando fui morar novamente na Itália, em 1969. Mais tarde quis retomar o inglês e fui tomar umas aulas. Foi engraçado, minha professora disse que eu tinha uma boa pronúncia, mas que o meu vocabulário era muito infantil...
Na tradução do "Estorvo" para o inglês eu fiquei em Londres uns dez dias, diariamente, com meu tradutor. Consegui entender o suficiente para detectar o que não estava correto –mas não conseguia apontar soluções.
A partir dos meus 15, 16, 17 anos, na minha adolescência, eu comecei a ler muito. E comecei a ler muito em francês –que ainda hoje eu escrevo melhor do que falo. Era influência da biblioteca do meu pai. O que ele mais tinha era literatura em língua francesa. E ler foi uma maneira que encontrei de me aproximar dele.
Folha - Você poderia explicar melhor essa relação?
Chico Buarque - A minha tentativa de aproximação com meu pai foi através da literatura. Ele vivia fechado no biblioteca e eu, que tinha medo de penetrar naquele território, começei a ler algumas coisas. Ele me indicava desde clássicos, como Flaubert, até Céline, Camus e Sartre. Li, ainda em francês, Kafka, Dostoiévski, Tolstói e uma boa dose de literatura russa. Mais prosa do que poesia: meu conhecimento de francês sempre foi suficiente para prosa e insuficiente para poesia. Eu me lembro de, lá pelos 18 anos, ir para a Faculdade de Arquitetura com esses livros em francês, o que era uma atitude um pouquinho esnobe. Talvez para me valorizar dentro de casa ou talvez para agradar meu pai.
Folha - Quando a gente começa a ler sempre surge aquele primeiro livro capaz de transcender o próprio mundo da literatura, aquele autor que sozinho passa a constituir um universo, que nós dá um susto e muda a nossa vida. Diante de que autor você sentiu a vontade de escrever?
Chico Buarque - Como eu dizia, eu tinha amigos com quem falava e discutia literatura em francês. Era uma atitude um pouco exibicionista, até que um colega me deu uma debochada: "Mas você só vem com esses livros para cá, por que não lê literatura brasileira?" Eu respondi: "Você tem razão". E comecei a ler o que não havia lido até então, de Mário de Andrade, Oswald de Andrade até Guimarães Rosa, por quem me apaixonei. Guimarães Rosa talvez seja esse marco para mim. Foi uma descoberta. Durante um bom tempo, queria escrever à la Guimarães Rosa. Participei de diversos concursos de contos naquela época textos cheios de neologismos.
Folha - Você começou pelo "Grande Sertão: Veredas"?
Chico Buarque - Comecei com "Sagarana", "Corpo de Baile" e chegar até o "Grande Sertão".
Folha - E na área de poesia, você chegou a conhecer o Manuel Bandeira?
Chico Buarque - Conheci Bandeira, Drummond, e conheço João Cabral. Bandeira eu conheci desde pequeno, porque ele era muito amigo de meu pai e padrinho de meu irmão mais velho, Alvaro Augusto. Tem até um daqueles poemas...
Folha - Do "Mafuá do Malungo"...
Chico Buarque - - É, tem um para o meu irmão Alvaro Augusto. Já mais velho quando fui morar no Rio de Janeiro, mas garoto ainda, fomos visitá-lo. Fui com o Tom e o Vinícius. Foi um encontro interessante. Ele tocou um pouco de piano e começou a contar umas histórias do meu pai. "Ah! o Sérgio"... e no meio de algumas lembranças ele mencionou "aquele filho alemão". Eu perguntei: "Que filho?" Eu não sabia que meu pai tinha tido um filho na Alemanha. O Vinícius me perguntou: "Você não sabia?" Eu disse: "Não". Era um pouco segredo lá em casa. Meu pai tinha tido um filho alemão antes de casar. Eu fiquei muito chocado e quando pude ir a São Paulo perguntei ao meu pai sobre isso. No começo ele não quis falar, mas depois abriu o jogo.
Folha - E você chegou a conhecer esse irmão?
Chico Buarque - Não. Eu até tinha vontade. Numa entrevista antiga, que meu pai deu para o Jorge Andrade, na revista "Realidade", ele falava uma coisa engraçada. Ele dizia que tinha a pele muito branca e quando viajava perguntavam se ele era filho de alemão. Ao que ele respondia: "Não, sou pai de alemão."
Meu pai viveu na Alemanha no começo dos anos 30, morou dois anos e veio embora. Tinha uma namorada que ficou grávida. Eu não sei bem a história desse namoro. Mas ele chegou aqui e, passado um tempo, casou-se com a minha mãe. Eu só sei que mais tarde, durante a Guerra, a mãe desse menino mandou uma carta a meu pai pedindo para ele enviar documentos provando que não tinha sangue judeu. Minha mãe, que sempre se ocupava das coisas práticas, foi quem descolou os papéis provando que meus avós e bisavós não tinham sangue judeu. Os papéis foram entregues ao Consulado Alemão aqui no Brasil. Foi a última notícia que se teve dela e do filho.
Volta e meia eu e meus irmãos tentamos descobrir o paradeiro desse irmão, que hoje teria uns 60 e poucos anos. Há algum tempo surgiu uma pista interessante. Um senhor, afinador de piano, disse que conheceu um Buarque de Hollanda.
Folha - Ele foi registrado como Buarque de Hollanda?
Chico Buarque - Não, foi registrado com o nome da mãe, que é um sobrenome comum, Ernest. Mas o primeiro nome dele é Sérgio, um nome que não existe na Alemanha. Ele é Sérgio Ernest. Eu já fui à Alemanha e já procurei na lista: Ernest é que nem Oliveira. Havia alguns com a inicial "S". Eu ficava especulando se poderia ser um deles. Pensava em telefonar, mas achava bobagem. O que ia dizer? "Oi, sou seu irmão". Ou: "Você é meu irmão?". Sabemos que ele ficou em Berlim, mas se no Leste ou Oeste, se morreu na Guerra, se a mãe contou ou não contou, isso não se sabe.
Então, aparece um afinador de piano dizendo que conheceu um colega da fábrica de pianos com sobrenome Buarque de Hollanda. Achamos que de repente o cara, sabendo o nome do meu pai, poderia ter recuperado o sobrenome. É uma história um pouco inverossímel. Mas, enfim, o cara poderia ter assumido o nome paterno e ter tentado entrar em contato com o pai. Mas, um Buarque de Hollanda, afinador de piano na Alemanha era muito inverossímel. Finalmente descobriu-se que ele existia mesmo, mas não era o meu irmão. Não conferia com a idade. Era filho de um outro Buarque de Hollanda, que andou por lá.
Folha - É muita coincidência, ainda por cima na área da música! Não era carregador de piano, não?
Chico Buarque - Pois é, não era... Bom, eu estava no Manuel Bandeira.
Folha - Foi o Manuel Bandeira que entregou...
Chico Buarque - Foi ele que entregou. Era compadre do meu pai, assim como o Vinícius, que conheci também desde pequeno. Na verdade esses amigos de meu pai da área literária estavam um pouco distantes quando eu fui morar no Rio de Janeiro. Naquele tempo ia-se pouco a São Paulo. Não é uma coisa como hoje que você vai e volta. E quando foi morar em São Paulo meu pai se distanciou um pouco do meio literário. Ficou mais ligado à história, ao mundo acadêmico.
Folha - Você chegou a conhecer o Oswald de Andrade?
Chico Buarque - Não lembro de ter conhecido, mas meu pai também não tinha uma relação muito próxima com o Oswald, ele era mais próximo do Mário.
Folha - O Drummond comentou numa entrevista, em tom de crítica, que você ligou uma vez à noite, já meio tarde, para dizer que tinha uma pessoa da Nicarágua querendo conhecê-lo. Houve isso?
Chico Buarque - Era o embaixador da Nicarágua no Brasil. Não me lembro o nome dele agora, mas você sabe que na Nicaragua todo mundo é poeta. Ele era fissurado pelo Drummond, que tinha escrito uma crônica anti-sandinista e ele queria explicar essas coisas. Fomos à casa do Drummond, já meio tarde. Mas ele foi muito simpático.
Folha - Você teve outros contatos com o Drummond? Em pelo menos duas músicas você faz referência explícita à poesia dele –"Flor da Idade" (75) e "Até o Fim" (78). A leitura de poesia brasileira é uma coisa presente para você?
Chico Buarque - Claro. Li tudo de Bandeira, Drummond e João Cabral. Com Drummond eu tinha contato. Não posso nem dizer que era uma amizade. Eu o visitava esporadicamente, mas ele sempre foi muito carinhoso, me mandava livros com dedicatórias, bilhetes, enfim, a gente se comunicava. Ele era muito fechado, muito tímido, eu também já não sou muito... E acho que havia um problema: uma vez ele brigou com meu pai...
Folha - É?
Chico Buarque - É, por causa de mulher.
Folha - E quem era?
Chico Buarque - Quem era o pivô eu não sei. Ambos eram solteiros na época.
Folha - Como é o seu contato com o Rubem Fonseca?
Chico Buarque - Sou amigo do Zé Rubem, gosto muito dele. Ele sempre me dizia que eu era um escritor. Ele tem um pouco isso de incentivar novos autores, de dar força. Ele leu o primeiro capítulo de "Estorvo", que foi traduzido para o inglês, porque o Luis Schwarcz (editor) estava trabalhando a possibilidade de vender o livro para o exterior. Esta primeira tradução, acompanhada do original em português, foi enviada ao Zé Rubem, que conhece muito bem o inglês, para ver se estava boa. O Zé Rubem, que já vinha me atiçando para escrever um livro, teve uma conversa comigo. Fez algumas observações muito interessantes. Quando o livro ficou pronto, entreguei a ele e ao Luis. O Zé Rubem veio aqui em casa cheio de anotações e até sugestões de mudanças.
Folha - Você foi receptivo?
Chico Buarque - Sim, sim. Já na primeira leitura ele observou que havia duas ou três construções que ele considerava inadequadas. Tinha uma palavra em inglês –e ele falou: "Isso é um horror". Era "flash". "Tira esse flash", ele disse. Eu não sei nem se deveria falar sobre isso, porque o Zé Rubem não gosta de dar entrevista e eu não posso dar entrevista por ele. Mas, enfim, eu tenho que dar esse crédito a ele, que foi a primeira pessoa, junto com o Luis Schwarcz, a me instigar a escrever o livro, dizendo, "você é escritor, você é escritor". Outra observação curiosa é que em certa passagem de "Estorvo" o personagem está numa festa e de repente uma moça, na frente dele, baixa o vestido e os seios ficam prá fora. O Zé Rubem me perguntou se havia baixado uma Dercy Gonçalves. Eu não concordei muito, achava justamente interessante, aquele absurdo, assim meio nonsense. Para contentar o Zé Rubem, deixei mais suave, só um seio de fora.

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