São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Uma peregrinação em ritmo alucinado

JOSÉ CARDOSO PIRES

De há muito, para mim, que escrever é uma busca de identidade –o trabalho de alguém que, através das personagens e da escrita, procura uma identificação consigo próprio, com a realidade vivida e com a língua em que se exprime.
Este romance de Chico Buarque, logo à primeira leitura, afirma-se como uma demonstração exemplar disso mesmo. "Estorvo" é, quanto a mim, uma peregrinação alucinada em demanda das raízes perdidas, através dum percurso existencial povoado de assombro e de solidão. Aqui todas as funções de equilíbrio das estruturas sociais –família, amizade, poder– perdem a sua consistência formal logo ao primeiro embate e entram em ruptura quando o olhar do protagonista (e do escritor) se prolonga sobre elas.
É o estorvo, esse olhar. Invade a paisagem com a inocência perversa dum personagem à deriva, um personagem facultativo que se desloca desesperadamente à procura de um instante de paz e de coerência. Alguém que se aproxima e que se demora, e quanto mais se demora mais se vê escorraçado e traído pela realidade que abordou.É isso o estorvo. Essa presença que deambula por um mundo em esclerose e que o descobre envolvido, por vezes, numa imagem mitômana de si mesmo e declaradamente instalado em máscaras de sedução. Um mundo declaradamente resignado, também, aos falalismos que o subjugam porque a insegurança e o crime que o envolvem, a droga e as evasivas, a cumplicidade e a traição, são o pão dourado cotidiano dessa sociedade que foge a interrogar-se com medo de se reconhecer. Reconhecer-se é um estorvo à sua trajetória natural.
Neste livro a paisagem do inferno desenha-se muitas vezes com retalhos do paraíso –a paz familiar duma certa ordem da burguesia. Mas a terrível novidade é que sempre que o olhar os penetra, os rostos deformam-se e a unidade fragmenta-se e sangra. A visão imediata e à primeira harmonia sucede-se o estilhaço de morte: é assim que em Chico Buarque as relações reais adquirem uma dimensão de caos ou de pesadelo acelerado.
Por trás disto (ou por dentro disto) está um Brasil, um Rio de Janeiro que à primeira abordagem se insinua em moldura de telenovela, mas que imediatamente deflagra em conflitos de terror. E há um terrível golpe de frio a percorrer todo o espaço humano que nele se condensa: alianças e confrontações, amor e morte, tudo ali é assumido com a importência gelada dum fatalismo social. A maconha, a violação ou a impunidade são afinal os "estorvos" secundários duma vida social que procura seu cantão de doce vida.
Será fácil, penso seu, associarmos uma impetuosa carga onírica a este romance de Chico Buarque: a própria estrutura da narrativa induz a essa aproximação com todas as rupturas do espaço cartesiano que ela nos traz e com toda a decupagem violenta em que se processa o seu desenvolvimento. E também, penso eu, ocorrerá a muitos leitores recordarem-se de Kafka pelo insólito realismo que a define.
Sim, tudo isso é possível numa obra tão inesperada, inconforme e tão internamente densa e calculada como esta. Só que a visão nova do real que ela nos transmite é alheia de qualquer dessas referências porque se faz independentemente dos jogos de símbolos que num ou noutro caso são os fundamentos essenciais da narrativa. Não. A metamorfose de Chico Buarque é demasiado pessoal para se acomodar a esses paralelismos, por muito honrosos que eles lhe sejam. Além disso, em "Estorvo" todo o movimento descritivo se faz ao contrário do processo kafkiano, ou seja, de fora para dentro. É um olhar que incide no real objetivo para depois o descobrir imensamente desconforme e desfigurado na sua organização.
Como na escrita, de resto. Em "Estorvo" percebe-se que o modo de narrar se processa por um embate imediato desenvolvido em aproximações sucessivas; a busca da frase, da palavra, desenvolve-se através dum movimento de apropriações objetivas –e daí resulta uma prosa visual que não cede à metáfora tentadora nem à elongação poética, por mais poeta que seja o seu autor.
É, pois, esta unidade, esta convergência do modo de olhar como o modo de escrever, que tornam mais raro e mais feliz este livro. Concebê-lo asim, tão liberto e arrojado, tão agressivo na sua forma de contar, tão despido de equilíbrio e ao mesmo tempo tão coeso e tão sóbrio na sua alucinação premeditada, concebê-lo assim, repito, é que o torna um ato de coragem criadora e uma realidade efetivamente viva na nova literatura de língua portuguesa.
"Sei que estás em festa, pá", escreveu um dia Chico Buarque a todos nós no mês de Abril de 1974.
Nós neste Novembro de 91 devolvemos-lhe a saudação, e confessamo-nos também em festa por este livro que ele nos trouxe do outro lado do Atlântico.

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