São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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muito prazer, SENHORA MARINA

SÉRGIO DÁVILA

Aos 38 anos, a cantora e compositora Marina Lima chega ao 11º disco, "O Chamado", e à maturidade. Define-se como "uma jovem senhora de passagem", com direito de ser e dizer o que quiser. Solteira, séria, sensual, fala sobre bissexualismo, falta de dinheiro, Lulu Santos, Antonio Cícero...
Por Sérgio Dávilla
Fotos Darcy Cardoso
A carioca Marina Correia Lima lança seu 11º disco e, com ele, sua 11ª cara. É a cara de uma mulher. Aos 38 anos, completados em 17 de setembro último, de garota ela só conserva os seios empinadinhos e a tatuagem no antebraço esquerdo, um cometa feito há muito tempo porque gostou "dessa estrela que tem rabo". O último sinal da pós-adolescência talvez seja o lustre de neon em forma de lua azul na sala de seu apartamento de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro – jogado num canto, é verdade. O resto é tudo coisa de "uma jovem senhora de passagem", como a própria anda se chamando.
"O Chamado", nas lojas desde o dia 14 de dezembro, 100 mil cópias prensadas, é denso, difícil e bonito. Com o disco, ela enterra de vez a fase das "bundinhas de fora", "eu te amo você" e "ninguém transa por transar", canções que animavam o verão. Não vai a praia há anos, deixou para as menininhas a prática do surf, windsurf e bodyboarding. Só cobre sua pele pálida com roupas pretas e brancas.
Abre a porta da casa usando um discreto vestido preto sobre camiseta de malha branca. Do sofá de veludo grená de sua sala – os livros "Sex", de Madonna, a biografia do cineasta americano Stanley Kubrick e uma pensata de Hélio Oiticica logo à frente – vê-se a Lagoa Rodrigo de Freitas, 11 andares abaixo, e mais nada. A sensação é de estar num navio, define Marina. Gestos contidos, opiniões sólidas, encarna o papel da jovem senhora à perfeição. Uma senhora atrevida, diga-se.
"Se me interesso por um homem, vou atrás para saber o que é. Se é por uma mulher, a mesma coisa", explica, com paciência, sobre suas preferências sexuais. Nada do alarde impositivo de "somos todos bissexuais", frase de oito anos atrás. Agora é simples: "Todo mundo tem os dois elementos, uma coisa homo e uma coisa hetero", diz. "Os que conseguem trafegar nesses dois caminhos são felizes, porque vivem as duas fantasias".
Coisa da idade? "As pessoas geralmente me falam que aparento dez anos menos. Não considero um elogio. Ter 38 anos não me incomoda. Se tenho uma aparência de frescor, saudável, é porque me sinto bem na idade em que estou". Marina tem aparência de frescor, saudável. Pratica ginástica no quarto e é adepta da bioenergética, terapia alternativa derivada dos princípios reichianos, em que tudo é energia e orgasmo é palavra-chave. A propósito, ela parece estar gozando cada dia de seus 38 anos.
Basta ver os números de sua maturidade: Marina chega perto dos 40 com 15 anos de carreira, mais de 1 milhão de discos vendidos, 700 shows no Brasil e uma temporada bem-sucedida nos Estados Unidos, França e Canadá em 1992.
Mesmo sendo a cara de Marina, "O Chamado" tem várias faces, distribuídas pelas 11 faixas. "Cada música reflete uma preocupação minha atual, uma busca", diz ela. "E o disco todo sou eu". Na capa, Marina aparece de perfil, do colo para cima, presume-se que nua, em foto de Cláudio Elisabetsky. Seu cabelo está, mais uma vez, diferente. Agora, traz um rabinho minúsculo atrás e as laterais raspadas à moda da atriz Christiane Tricerri, na peça "Sonhos de Uma Noite de Verão". Três textos, do pensador americano Joseph Campbell, do filósofo alemão Friederich Nietzsche e do escritor português José Saramago, abrem o encarte. Falam de Deus, verdade e liberdade. E vem a primeira faixa, "Carente Profissional", de Frejat e Cazuza. Marina tem o que dizer disso: "Nós, os artistas, somos carentes profissionais e devíamos ganhar bem por expor nossas dúvidas e nossas poucas certezas".
Para ela, seu lugar ao sol, como diz a música, está garantido. "Porque mereço, e não porque fiz clima aqui e ali, uma propagandazinha". Mas acha que mereceria muito mais. "O Brasil paga muito mal seus artistas. Consegui comprar agora minha primeira propriedade, este apartamento, depois de 15 anos na música", revela. "As carreiras aqui são muito efêmeras". Por isso, acredita em alianças. "Eu até entendo o Gil e o Caetano terem se juntado para a Tropicália 2. Sem alianças, sozinho, não dá".
Marina está sozinha. Culpa um pouco sua geração de músicos. "O Cazuza adoeceu e se afastou, Lobão tem uma trip toda dele e o Lulu Santos é muito egocêntrico – já o convidei várias vezes para fazer show, mas ele não gosta de dividir nada". Marina está esquentando e ainda é o começo. Fala também do fim de sua parceria com o irmão Antonio Cícero, 48, filósofo atualmente às voltas com a "Enciclopédia do Fim do Século/Milênio". Desde o primeiro disco dela, a dupla vem assinando pelo menos 60% das músicas. Neste, apenas uma leva a chancela dos dois, "Eu Vi o Rei Chegar", sobre o pai deles, que morreu em setembro de 1992. "Acabou, acabou, não adianta correr atrás. Você tem que saber abrir mão das coisas que não funcionam mais", diz Marina sobre o fim da parceria.
A segunda música, "It's Not Enough", Marina canta em inglês, e bem – passou infância e parte da adolescência em Washington (EUA). Seu pai, o economista Edwaldo Correia Lima, era funcionário do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, e trabalhou na capital americana nas décadas de 60 e 70. "Me sentia discriminada", lembra. "Foi horrível".
Em sua sala, Marina já chupou uma bala de hortelã, bebeu limonada, Coka Diet e água. "Que tal aquele brinde que faltou?", pergunta a terceira música, a mais polêmica, que dá nome ao disco. Muita gente entendeu a letra como uma conversão tardia de Marina à religiosidade. "Besteira", diz ela. "Tanto que coloquei o texto do Campbell, 'O Poder do Mito', no disco porque diz exatamente o que penso: que você pode amar alguém que não tenha imperfeições, mesmo que seja Deus". Nem só os amigos de Marina arquearam a sobrancelha para "O Chamado". Talvez influenciado pelas estrofes "Céu abriga/O recado/Para eu me guardar", um pastor/DJ da FM evangélica Catedral, no Rio, a chamou para divulgar o disco. "Quase morri de rir", lembra. "O pastor me entrevistando e falando que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, elogiando a música, minha conversão".
Os amigos a levaram a regravar "Pessoa", de Dalto. A música tocou nas rádios nos anos 80 com uma roupagem tecno, totalmente impessoal. Mas a letra era bonita. "E uma cantora nunca esquece uma letra bonita", diz Marina. "Gravei 'Pessoa' como uma resposta a meus amigos que vivem dizendo que eu tenho medo de amar". Tem também "Stromboli", de Alvin L., 20, seu mais novo parceiro. "Ele me renova", diz. "Tenho muitos amigos mais novos atualmente".
Os amigos de Marina são o ator Maurício Branco, "engraçado, irreverente", o músico Renato Russo, a cantora Marisa Monte, as atrizes Denise Bandeira e Carla Camurati. Com Carla, Marina já pensou em adotar uma criança – cada uma a sua. "Não descarto a idéia de ser mãe, mas não me vejo ligada eternamente a homem nenhum", diz Marina. Carla, então, foi atrás do que era necessário para a adoção. "Muita burocracia", lembra Marina. Hoje, pensa em talvez ter um filho com seu amigo, o cenógrafo Gringo Cardia. "Temos uma relação boa, livre".
"O Chamado" chega ao fim. A jovem senhora deixa no ar a possível maternidade. Quem sabe no próximo disco Marina tenha a cara de mãe.

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