São Paulo, terça-feira, 11 de janeiro de 1994
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Série revê era de sexo, drogas e funk

CARLOS CALADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Título: In Yo' Face! - The History of Funk (coletânea)
Artistas: James Brown, Sly & Family Stone, Parliament, Funkadelic, Earth, Wind & Fire, O'Jays e outros
Gravadora: Rhino (EUA)
Formato: 5 CDs
Importação: The Music Mail Box (tel. 011/530-4999; encomendas só com cartão de crédito internacional)
Preço: cerca de US$ 100 (a coleção)

A caricata exumação dos anos 70 que vem sendo operada pelo mercado cultural nem sempre tem resultado, felizmente, em produtos oportunistas e vazios. Recém-lançada nos EUA, a antologia "In Yo' Face - The History of Funk" resgata alguns dos melhores momentos musicais criados durante a chamada "década do desbunde", revivendo hits de James Brown, Sly Stone, George Clinton e outros astros do funk.
Além de permitir às novas gerações um primeiro contato com essa criativa fase do pop negro (cujas gravações encontravam-se há muito tempo fora de catálogo), a série de cinco CDs do selo Rhino também oferece uma novidade aos fãs mais veteranos do gênero. Passadas a limpo através da tecnologia digital, as pioneiras experiências eletrônicas dos "funkmen" recebem um tratamento sonoro que o velho vinil não tinha condições de oferecer nas edições originais.
O funk nasceu na virada para os anos 70. Apesar de ser uma resposta irreverente e dançante de alguns músicos negros à banalização crescente da soul music (o estilo que dominou o pop negro durante a década de 60), o funk jamais chegou a ser uma revolução musical, mas sim uma evolução do velho rhythm n' blues. As aspirações pop da classe média negra que passaram a orientar o soul com o sucesso massificante da gravadora Motown, os "funkmen" opunham uma música mais rude e dançante, muitas vezes até obscena.
O objetivo principal era "salvar a música dançante das besteiras", disparava o chefão funkeiro George Clinton, autor também do slogan que melhor identificou o abusado espírito funk: "Free your mind and your ass will follow" (libere sua mente e seu rabo a seguirá). Diz a lenda que, depois de ter pedido emprestado os amplificadores da banda Vanilla Fudge para uma apresentação, no final da década de 60, Clinton resolveu fazer um som mais pesado, diretamente influenciado pelo rock de Jimi Hendrix e Frank Zappa.
Pornografia
A velha máxima roqueira "sexo, drogas e rock' n'roll" também foi seguida à risca pelos funkeiros –exceto pelo último componente, é claro. Canções com letras de evidente duplo sentido pululavam no gênero, como duas bastante escancaradas que fazem parte da coleção: "Do It 'Til You're Satisfied" (Faça até você ficar satisfeito), da banda B.T. Express; e "Shake Your Rump to the Funk" (Mexa seu rabo para o funk), dos Bar-Kays.
O próprio termo funk (leia sobre sua origem no quadro abaixo), que já nasceu com a marca da pornografia, é perfeito para duplos sentidos sonoros. É só consultar, por exemplo, a faixa "Got to Give It Up", no volume 4. Quem pode garantir que Marvin Gaye –um mestre da soul music dos anos 60 que também não resistiu ao funk– está mesmo cantando "you can funk me if you want to, baby" e não "you can fuck me if you want to" (você pode me foder se quiser)? Pelo menos nos shows ao vivo de Gaye, a resposta certa costumava ser a segunda.
Títulos como o da faixa instrumental "Cut the Cake" (Corte o bolo), da banda AWB, também serviam de mensagens cifradas para os funkeiros mais "doidões". Em sua "Bustin' Out" ("Queimando"), o cantor Rick James (inventor do chamado "punk funk") não deixava muitas dúvidas sobre sua predileção pela marijuana. "Fire up this funk /And let's have a toke" (Acenda este funk /e vamos dar uma provada), diz a letra, sem qualquer cerimônia.
George Clinton nem precisaria ter declarado em entrevistas que seu funk se desenvolveu durantes muitas viagens de LSD, compartilhadas com os parceiros das bandas Funkadelic e Parliament. Basta ouvir suas guitarras psicodélicas, ou conhecer os personagens bizarros (ele mesmo se autodenominou Dr. Funkenstein) de suas músicas. São histórias de terror e ficção-científica recheadas de humor ácido, que acabaram desembocando em uma alucinada mitologia funk.
Diluição
Quem acha que o funk está confinado apenas aos bailes homônimos que acontecem todos os finais de semana na periferia do Rio de Janeiro –onde a fórmula "sexo, drogas e funk" foi acrescida de muita violência– precisa afinar mais os ouvidos. Uma década após seu aparente declínio, o gênero que influenciou diretamente o nascimento da disco, do hip hop e do rap continua pulsando, tanto nos trabalhos recentes de mestres como James Brown e George Clinton (que, por sinal, tem o novo "Hey Man, Smell My Finger" saindo nos EUA) como entre a nova geração do pop negro.
Depois de conhecer pelo menos um dos cinco CDs da série, qualquer um que ouça hoje as deliciosas meninas do grupo vocal En Vogue cantando o refrão de "Free Your Mind" ("free your mind and the rest will follow", isto é, libere sua mente e o resto seguirá) vai sentir logo como o atual resgate dos anos 70 recende a bobagem e água com açúcar. Dr. Funkenstein que o diga.

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