São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Impoliticamente correto

RICARDO SEMLER

Tantas ruas têm no nome uma homenagem a políticos desonestos. Fico então pensando quem estaria sendo honrado no caso da avenida Marginal. Sigo a toda nela, quando, de repente, o trânsito engasga para ver o boneco Ricardão que, aliás, deveria se chamar Paulão. Afinal, teve a imagem confecionada por dinheiro público e só serve para criar ilusão de ótica para os menos avisados.
No primeiro farol uma turma estende uma faixa pedindo ajuda para compra de cadeiras de rodas. Procuro a carteira, enquanto penso na desculpa fácil dos que não dão esmola porque habituariam mal aos que deveriam estar trabalhando. Passo o dinheiro e me ocorre: cadê os paraplégicos? Fico envergonhado de achar que os deficientes têm que ser desfilados em pleno cruzamento para que os motoristas sejam movidos à caridade. Dou um pouco mais. Eta dilema moral burguesão.
Dou a partida e penso nas palavras que usei: paraplégico, deficiente. Pouco depois passo pela AACD, uma associação em prol das "crianças defeituosas". Nossa, põe politicamente incorreto nisso, mas décadas atrás não era problema algum. Aliás, neguinho era expressão carinhosa; negão denotava porte; japonês era todo oriental e alemão o único ruivinho no campo de várzea. Agora não pode mais não.
O ápice do politicamente correto está nos EUA, e nós, como bom quintal cultural deles, aguardamos nossa vez para introduzirmos infantis conceitos de semântica, da mesma forma que aguardamos com benemérita paciência para que o Robert Plant do Led Zeppelin chegue por aqui na aposta de que não perceberemos que ele está com 18 anos de atraso. Lá, o ex-crioulinho, depois de nigger, coloured, negro e recém-black virou afro-american. E a palavra afro-brasileira já pintou por aqui. Daí, o gordo virou obeso, que virou avantajado, e agora tende para "horizontalmente privilegiado". O velhinho se transformou em idoso e migra firmemente em direção ao "cronologicamente progressivo". O baixinho saiu de pintor de rodapé diretamente para o "verticalmente desinteressado".
Cruzo em frente ao Hospital dos Defeitos da Face e já consigo ver o novo nome: Centro de Desenvolvimento de Semblantes Alternativos. Parece que o Jânio, que tirou favelas da Cidade Jardim para os moradores esquecerem que moram em São Paulo, da mesma forma que o Maluf promete proteger uma árvore de 40 anos enquanto arruina a vida de milhares de moradores. Ou então, as empresas que separam o papel de vidro e do metal, apenas para que seus lixeiros (desculpe, Articuladores do Material Reutilizável) juntem tudo numa pilha única no dorso do caminhão.
Minha gente, (como dizia o pai-de-todos-da-CPI) vamos botar os pés no chão. Ninguém vira respeitador através da semântica. Não vamos botar banca de educados. Fazemos de conta que não somos racistas, discriminadores e machistas, mas é claro que somos, e bastante. Tapar o sol com a peneira, aprendendo a manejar a linguagem do eufemismo atrasa ainda mais a verdadeira modernidade, porque ensina aos cínicos a linguagem dos Ricardões. Tá certo que a CPI vai dar em massa recheada com aliche, comida por senhores de casa de boa reputação. É que a correção do IPVA e do IPTU é uma forte penetração alternativa de grupo de risco, mas o português claro é mais honesto. Vamos deixar de sacanagem verbal, pô.

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