São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Crônicas americanas 2

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Recentemente, um jovem brasileiro conseguiu asilo político nos Estados Unidos. Sua escolha sexual homoerótica justificou o pedido, que foi aceito por um juiz de San Francisco. (A decisão, aliás, cria um precedente que pode acarretar consequências surpreendentes. Visto o anseio migratório atual, o estado de Minas Gerais, por exemplo, poderia assistir a um inexplicável aumento do homoerotismo declarado e assumido de suas mais jovens gerações. O futuro estudioso dos costumes que se cuide na interpretação dos dados).
Há sem dúvida uma discriminação (não instituída, mas efeito de prejuízo) contra o homoerotismo no Brasil. Imaginemos que ela seja matéria suficiente para invocar um direito de asilo. Tal pedido só poderia ser recebido se for endereçado a uma nação isenta de prejuízo, segura de seu indiscutível respeito por esta escolha erótica. Para entender: faria sentido que o Iraque aceite o pedido de asilo político de um independentista curdo de nacionalidade turca?
Ora, menos de dois anos atrás, a "Newsweek International" publicava uma sondagem de opinião. A pergunta: "Será que os direitos dos gays constituem uma ameaça à família americana e seus valores?", 45% dos entrevistados respondia "Sim". A resposta, apenas minoritária, sugere um clima nada paradisíaco para um jovem gay nos EUA.
Que nosso juiz fosse de San Francisco, onde mora a maior comunidade gay dos EUA, tampouco explica sua decisão, a qual tem valor federal. Ao contrário, um juiz californiano, por sua proximidade da comunidade gay, dificilmente seria desinformado a ponto de pensar que os brasileiros sejam mais homófobos do que os norte-americanos. Resta assim supor que ele não concedeu o asilo político nem por causa de duvidosas perseguições brasileiras, nem por causa de duvidosas seguranças norte-americanas.
A escolha do juiz não se funda na verdade dos fatos; ela parece querer resgatar a culpa desses fatos. Em outras palavras, a razão da escolha do juiz não é o eventual desconhecimento da tolerância brasileira e da homofobia americana. A razão de sua escolha são as próprias manifestações homófobas nos EUA, como no Brasil. A culpa destas mesmas manifestações é que parece produzir uma necessidade de compensação. Desta decisão é o juiz que espera sair inocentado; é ele que entra culpado na câmara e decide não segundo sua consciência, mas segundo sua culpa, ou –ainda– assimilando sua consciência à culpa social.
O poder judiciário não tem o monopólio da culpa, longe disso. Sua "alma mater" seria antes a universidade, tradicional caldeirão da sensibilidade progressista. Lembremos a história de Leonard Jeffrey (veja-se o excelente artigo de J. Traub, "The New Yorker", 7/6/93). Jeffrey tornou-se professor e chefe do Departamento de Black Studies da City University of New York desde o embalo de sua criação. Era o fim dos anos 60, após o assassinato de Martin Luther King, e a chantagem devia funcionar: "Os programas separados de Black Studies ou o caos".
Que se tenha cedido a essa exigência de uma comunidade discriminada e ferida é normal. Mas por que isso implica que uma universidade desista de sua vocação própria e permita a deriva de tais departamentos em oficinas de ideologias racistas e separatistas sem mesmo o pudor de um semblante de dignidade acadêmica? Essa desnecessária desistência só parece se explicar pelo sentimento de culpa. (Note-se que isto não é sempre o caso; vários departamentos de Black Studies produziram e produzem contribuições essenciais, por exemplo, à historiografia americana).
Assim, Jeffrey, sem qualquer qualificação acadêmica significativa, ocupou durante anos uma cadeira de onde propagou doutrinas falsas, teorias semitas, incitação ao ódio racial etc. O silêncio da Cuny não foi covardia, mas culpa. O caso acabou explodindo a partir de uma palestra pública em 91. De toda parte sua exclusão foi pedida e a Cuny foi bem feliz em ceder à pressão cultural e política. Mas eis que, em maio de 93, um júri federal, colega do juiz de San Francisco, considerou que a decisão da Cuny era lesiva aos direitos constitucionais de Jeffrey e condenou a Cuny a indenizar em US$ 400 mil e a reinstalar em seu ofício esta tragicômica figura.
A culpa, em suma, parece reinar soberana. Os incrédulos poderão ler o excelente livro de Robert Hughes ("A Cultura da Reclamação", Companhia das Letras, 1993) e verificar que ela pode destituir a verdade, comprometer a memória, erigir-se em critério moral e mesmo decidir do juizo estético (pois a arte se torna prerrogativa da vítima). Mas será que invocar a verdade, a memória, a moral ou mesmo o gosto é uma resposta possível?
Jeffrey contava e conta bobagens (por exemplo, uma cosmogonia que atribui ao judaísmo a origem da escravatura e nega sua existência na Africa islâmica e negra bem antes que o comércio ocidental se interesse em explorá-la). Seria fácil fazermo-nos aqui de paladinos da "verdade" contra uma ideologia barata. Mas, se tomássemos a defesa dos "fatos", todos –o juiz de San Francisco e os Jeffreys da vida– nos diriam provavelmente que qualquer verdade serve sempre a interesses escusos. Em outras palavras, eles nos diriam que a "justiça" deve estar acima da verdade e não o contrário.
Desse ponto de vista, os fatos ou a história como nós os contamos, de qualquer forma, sempre seriam a epopéia da qual necessitamos para dar um sentido ao nosso presente e ao nosso futuro. Entre os "Jeffreys" e nós, então, não haveria nenhuma diferença de fundo. Só se oporiam aqui diferentes versões da história americana: uma (aquela da qual seríamos acusados de ser os defensores) que alvejaria os progressos da nação, outra (a de Jeffrey) que alvejaria a separação dos negros norte-americanos, outra ainda (a do juiz de San Francisco) que alvejaria a separação social segundo as escolhas sexuais etc.
No final das contas, cada versão valeria tanto quanto as outras. E deveríamos pensar que talvez estejamos só assistindo a uma transformação do tecido social, onde decai a comunidade de destino, que é tradicionalmente uma nação –ou que quis ser, por exemplo, o proletariado– e surgem novos destinos coletivos para os quais se constróem novas histórias e novos mitos: as mulheres, os gays, os negros etc.
Se assim fosse, nossa aparente insatisfação com a desagregação social que esta transformação parece impor, não seria nada mais do que uma nostalgia babaca. Mas é legítimo se perguntar que mundo promete esta nova sensibilidade progressiva. Ou ainda se os grupos de "vítimas", que parecem se substituir, por exemplo, à classe ou à nação, anunciam, como pretendem, uma nova política, ou então testemunhem, quer se queira quer não, uma época, a nossa, onde a ação propriamente política parece cada vez mais difícil.

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