São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Escritos de Henry James são reunidos

Saem nos EUA dois volumes sobre viagens do escritor

WILLIAM F. BUCLEY JR.
DO "NEW YORK TIMES BOOK REVIEW"

É de tirar o fôlego. Página após página, capítulo após capítulo; metrópoles, cidades, vilas, igrejas, monumentos, num país atrás do outro, descritos e sondados por um literato com um poderoso e encantado caduceu na mão. Ele o usa para, numa elaborada cerimônia litúrgica, coroar as glórias do homem e da natureza, mas também para jogar água fria naqueles aspectos do mundo e de seus habitantes que não as possuem –bem, não de acordo com Henry James. E manifestamente, ele tem todo o tempo no mundo à sua disposição.
Mas então, o que se acumula é mais do que a maioria dos leitores tem de tempo para ler, mesmo que todos nos sintamos maravilhados com o que lemos. Em 1897, com seus 50 e tantos anos, Henry James queixou-se de dores em seu pulso. O que certamente não nos surpreende. (Daí em diante, ele passou a ditar para uma secretárai). Em 1909, queimou bem 40 anos de cartas e artigos –e ninguém supõe seriamente que ele encontrou tempo para relê-los antes de os queimar, não no ritmo em que escrevia, nem nas horas de folga de seu trabalho. Um ano depois, falou que teria tido "uma espécie de colapso nervoso". Poderia tal episódio ter sido uma reação às demandas absorventes de sua criativa curiosidade?
Cinco anos depois, decidiu oficializar sua expatriação, tornando-se, assim, um súdito britânico. No ano seguinte, 1916, estava morto, aos 72. Um talento prodigioso e um artesão extremamente laborioso. Leon Edel, seu biógrafo, talvez tenha calculado o tamanho da sua produção total. Estimo que os dois volumes em formato conciso de seus "Collected Travel Writings: ("Great Britain and America" e "The Continent") da Library of America tenham perto de três quartos de milhão de palavras. Aproximadamente o tamanho de uma matéria de 900 páginas de uma revista "Time", da época em que a "Time" imprimia quase só texto.
Ele foi muito famoso, embora não muito rico (Edith Wharton surrupiou uns poucos milhares de libras de sua conta bancária). Era o solteiro sociável, fervorosamente convencional, que registrou que tinha jantado fora 105 vezes numa única temporada social em Londres. Durante a Guerra Civil, quando estudava direito em Harvard, deixou crescer uma barba. Aos 57, livrou-se dela, pois tinha se tornado branca. Era chegado a seus irmãos; seu irmão William, o preeminente filósofo, era tão famoso quanto ele. Despendeu seu tempo com Flaubert, Zola, Stevenson, Shaw e Wells e escreveu novelas que perduram, entre as quais, "The Wings of the Dove" (As Asas da Pomba), "Portrait of a Lady" (Retrato de uma Senhora) e "The Ambassadors" (Os Embaixadores).
Como presente para celebrar seu 70.º aniversário, seus amigos lhe deram seu retrato realizado por Sargen. O rei George 5 lhe deu a Ordem do Mérito, uma distinção conferida a muitos poucos, aos maiores em talento e realização.fSuas novelas transformaram o modelo, com seu fluxo de consciência e arrogância literária –tanto que a geração seguinte, a de Hemingway, o usaria de um modo muito diferente.
O que passa, então, na mente do leitor dessas peças de viagem? Duas coisas. A primeira é que ninguém, exceto os destemidos escoteiros de um curso de pós-graduação, lerá todo o texto. A segunda? Que você pode fechar os olhos e abrir qualquer volume, em qualquer página, e se flagrar lendo uma prosa tão resplandecente que o fará flutuar. Assim, depois de um tempo, depois de bastante tempo, você reconhecerá que é realmente necessário descer de volta à terra, pois existem muitas outras coisas para fazer. E além disso, se ficar tempo demais com ele, naquele mundo envolvente, perfumado, colorido, brilhante e absorvente, você se sentirá inteiramente imobilizado, como um musgo.
Por exemplo? Em suas incessantes viagens, um dia ele sai da Itália para ir à Alemanha. Henry James não perambula pelo mundo com sua mente fechada ou com sua pena trancada na gaveta. Como disse certa vez: "Mantenho em minha consciência que devo fazer uma nota sobre minha excursão". Como é que as coisas sobre uma viagem da Itália até a Alemanha se conciliam na consciêcia de uma pessoa? Rumina-se sobre as diferenças entre os dois países. Leia como Henry James o faz e abandone qualquer esperança de competir com ele:
"Há algumas semanas, saí da Itália na condição verdadeiramente desmoralizada na qual a Itália lança os espíritos confiantes que a ela dão permissão ilimitada para agradá-los. Beleza, eu viera a acreditar, era uma possessão exclusivamente italiana; o rosto humano não merecia ser olhado a menos que redimido por um sorriso italiano, nem valia a pena ouvir a voz humana a menos que sintonizada com as vogais italianas. Uma paisagem não era paisagem sem vinhos afestoados às figueiras num vento cálido –uma montanha, uma abominável excrescência, a menos que se dissolvendo numa névoa toscana. Mas agora que troquei categoricamente os vinhos e figueiras pelo milho e repolhos, os violáceos Apeninos pela doméstica planura de Frankfurt, os líquidos pelos guturais, e o sorriso italiano pelo sorriso largo e forte dos alemães, sinto-me muito mais satisfeito do que me aventuraria a esperar. Mudei meu padrão de beleza, embora ainda inspire um quê da idéía divina."
Caminhando pelas ruas de Eton num verão dos anos 1880, sua mente se volta para Winchester, lar de uma outra grande escola pública. Ele lembra "os pátios do velho colégio, vazios e silenciosos ao entardecer; a suave luz sobre as paredes castigadas; as imensas e verdes campinas, onde os rapazotes de voz aguda faziam sombras gigantes; os arredores da velha caoedral da cidade, com sua admirável igreja, onde os primeiros reis foram enterrados –tudo isto parecia criar um mágico cenário de fundo para as vidas dos meninos e fornecer um suprimento de memórias ternas e pitorescas para o homem crescido que passava por ele". Essa pequena lembrança, veja você, apenas com o propósito de nos garantir que "Eton, no anoitecer de uma clara tarde de junho, deve ser tão boa ou, de fato, muito melhor".
Os contrastes são desenhados com nitidez. Existe a outra face da Inglaterra, como vista a bordo de um vapor cruzando o "sórdido beira-rio" em Londres. "Durante milhas e milhas, nada se vê, senão os fundos dos armazéns cobertos de fuligem ou, talvez, sejam os rostos cobertos de fuligem. Em construções tão absolutamente inexpressivas, é impossível distinguir. Ficam aglomeradas nas barrancas da corrente ampla e turva, cuja qualidade é, felizmente, demasiado opaca para refletir uma imagem melancólica ... O rio é quase preto e está coberto com barcaças pretas; por sobre os telhados negros, por entre as docas e bacias que se estendem até o longo, surge um obscuro emaranhado de mastros. O pequeno vapor arquejante é sujo e robusto –arrota uma negra nuvem que faz companhia durante a viagem. Nesse chuveiro carbonífero, seus companheiros, em sua maioria pertencentes, de fato, às classes destituídas de lustro, assumem uma opacidade harmoniosa; e o quadro global, lustrado com a viscosa neblina londrina, torna-se uma composição magistral.".
Em 1904, Henry James estava longe da América havia 20 anos. A morte de seus pais em 1882 foi uma das razões para não voltar; além disso, "a viagem pelo Atlântico" poderia ser classificada "mesmo com o oceano em ótimo humor, como um enfático zero na soma das boas experiências de uma pessoa." E assim ele nos forneceu extensas impressões do que viu ("Quando a concentração está dirigida para a observação, nada ... é trivial"). James agora se reconhece um expatriado. Está um tanto desorientado. "É de extremo interesse ser lembrado... de que é necessária uma quantidade infindável de história para criar uma tradição, pequena que seja; e uma quantidade infindável de tradição para criar um gosto, pequeno que seja; e uma quantidade infindável de gosto, pela mesma lógica, para criar uma tranquilidade, pequena que seja. A tranquilidade resulta principalmente do gosto habilmente aplicado, gosto iluminado acima de tudo pela experiência e dotado de uma pista para seu labirinto."
Contudo, o apego de James pela Inglaterra, embora vivamente expresso, não é, concluí depois de ler seus tributos à Nova Inglaterra, Itália, França e Alemanha, de forma alguma exclusivo. Mas, então, por onde quer que viaje, seu olho crítico está alerta: "Tinha acabado de entrar e, tendo tratado da disposição de minha bagagem, sentei para ponderar sobre minha acomodação." E assim, existe quase sempre uma perspectiva, muitas vezes em fermentação. E ele pode ser severo.
Sobre Genebra, escreve que seu "tom moral" é "epigramaticamente, embora merecidamente em termos gerais, ilustrado pelo fato, recentemente relatado a mim por um amigo arguto, de que, encontrando um dia na rua um cartaz de teatro com a inscrição Bouffes-Genevois, ele explodiu numa gargalhada irreprimível. Para perceber a ironia da frase, é necessário que se tenha vivido tempo suficiente em Genebra, para sofrer da carência de humor da atmosfera local e da ausência, também, daquele caráter estético, que é cria de uma generosa visão de vida."

AS OBRAS
Henry James: Collected Travel Writings - Great Britain and America: English Hours, The American Scene, Other Travels, editado por Richard Howard. The Library of America, Nova York. Ilustrado, 846 págs. US$ 35

Henry James: Collected Travel Writings - The Continent: A Little Tour in France, Italian Hours, Other Travels, editado por Richard Howard. Nova York: The Library of America. Ilustrado, 846 págs. US$ 35

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