São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Caprichos do último rolo

O cinema já não quer guardar surpresas para o final

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Um leitor (e deve haver outros) não gostou de saber, através da Folha, que Kevin Costner morre no final de "Um Mundo Perfeito". "Mea culpa". Da qual, aliás, não me arrependo. A morte de Costner não é uma surpresa; ao contrário, é mais do que previsível, como previsíveis são todas as soluções dramáticas de segunda mão. De qualquer modo, o leitor tem razão de se sentir lesado. Espero que tenha aprendido esta lição: críticas a gente só deve ler depois de ver o filme. Se todos procedessem assim, nós, críticos (ou resenhistas), tiraríamos dos ombros o fardo de guias de consumo, que tantas responsabilidades e limitações nos impõem.
Não me agrada o poder –e muito menos a obrigação– de fazer com que uma pessoa vá ou desista de ir ao cinema, razão pela qual prefiro escrever sobre filmes já em cartaz, supostamente vistos pela maioria dos leitores. Assim, nada imponho, creio; apenas experimento um arremedo de diálogo ou troca de impressões com outros espectadores. E me livro de certos compromissos, como o de manter em segredo certas surpresas pouco ou nada surpreendentes, mas de vital importância para determinado raciocínio crítico. Para mostrar que o desfecho do filme de Clint Eastwood rima com o de outro, "O Segredo das Jóias", de John Huston, era preciso dizer que o personagem de Costner morre num descampado, com uma bala no bucho. Não revelei, porém, o autor do fatal disparo, nem o farei agora, a menos que estivesse interessado em levar às últimas consequências uma leitura freudiana do filme.
Nada escrevi a respeito de "Traídos Pelo Desejo", mas desconfio ser quase impossível analisá-lo a contento sem abrir o jogo sobre o sexo do travesti. Semelhante desafio impõem algumas obras de Hitchcock, como "Psicose", "Um Corpo que Cai" e "Ladrão de Casaca", mas as surpresas que elas reservam para o final não me parecem essenciais à sua perfeita, completa, fruição. Muita gente as viu já sabendo que na primeira o filho era a mãe, na segunda a mesma mulher morria duas vezes, e na terceira o gato era uma gata –e nem por isso descarregou menos adrenalina. O único segredo relevante de Hitchcock era o seu incomparável poder de hipnotizar a platéia. E nele tanto confiava que muitas vezes se deu ao luxo de revelar logo de cara a identidade do verdadeiro assassino.
Ademais, respeito com respeito se paga. Quando gostamos de um filme, nada mais natural que ajudemos a preservar seus mistérios, enigmas e caprichos. As vezes isso é quase impossível. Como não tocar na inesperada morte de Jean-Louis Trintignant em "Aquele que Sabe Viver", se é justamente ela que arremessa o filme de Dino Risi aos píncaros da tragicomédia transcendental?
Consegui escrever dois artigos sobre "O Sol Por Testemunha", de René Clément, sem revelar seu arrepiante desfecho. Foi fácil, por serem outras as fontes do seu encantamento. Mais complicado seria comentar "Casablanca" abstraindo seu desenlace. Bem mais complicado do que, por exemplo, analisar "Thelma e Louise" omitindo o voluntário mergulho das duas num abismo.
Na abertura de "Testemunha de Acusação", os produtores pediam aos espectadores que não contassem a ninguém o epílogo do julgamento, de fato inesperado, não derivasse o roteiro do filme de uma intriga de Agatha Christie. Como se tratava de um filme de Billy Wilder, sua reviravolta final era apenas um acréscimo a outras virtudes (bons diálogos, direção segura, esplêndido desempenho de Charles Laughton) sobre as quais a crítica preferiu se deter, respeitando o pedido dos produtores. Hoje, um pacto desse tipo seria quase impossível, tão mais numerosos são os candidatos a inconfidentes e tão mais sôfrega de "furos" a mídia tem andado.
Não bastasse, o cinema atual não parece muito propenso a guardar surpresas para o último rolo. Talvez devêssemos atribuir essa inclinação ao escasso estoque de surpresas disponível num mercado onde copiar virou virtude. Na verdade, a julgar por recente reportagem do "Variety", o cinema atual está preocupado, mesmo, é com a abertura, não com o desfecho, de seus filmes. Hollywood acaba de redescobrir o valor do que em jargão jornalistico chamam de "lead". E para que o impacto das aberturas de seus filmes não seja prejudicado pela intrusão dos créditos, despachá-los para a outra extremidade foi a melhor solução encontrada.
"Um Mundo Perfeito" é apenas o exemplo mais recente dessa nova mania a chegar às telas brasileiras. Clint Eastwood, que já optara por entrar direto na intriga em "Os Imperdoáveis", explica: "Primeiro, a gente mostra o que os espectadores querem ver; depois, o que a gente quer que eles vejam". David Valdes, produtor-executivo de Eastwood, confidencia: "Clint não aguentava mais ver seu nome aparecendo inúmeras vezes na tela, antes e depois do filme". Steven Spielberg também aderiu ao que ele qualifica de "a maneira mais simples, lógica e criativa de começar um filme". Em "Jurassic Park" e no recente "Schindler+s List", os créditos só rolam depois.
Não é nova a idéia –há pouco tivemos os casos de "Arma Mortífera 2" e "O Ultimo Grande Herói"–, mas só agora ela encontrou condições de tornar-se corriqueira. Até seis anos atrás, o sindicato dos diretores norte-americanos só excepcionalmente permitia que seus membros fossem creditados no fim do filme, mesmo quando o próprio autor do filme assim o exigia. Peter Bogdanovich custou a convencer o sindicato de que "A Ultima Sessão de Cinema" merecia ser uma exceção. George Lucas, que exigiu a mesma coisa para "O Império Contra-Ataca", não teve a mesma sorte e foi obrigado a pagar US$ 250 mil de multa. Em represália, largou o sindicato.
"Crédito, a gente põe onde fica melhor, e quem deve decidir isso é o diretor", argumentou Martin Scorsese, um dos que mais lutaram para derrubar a velha cláusula do sindicato. Dennis Hopper, por exemplo, decidiu encaixar os de "The Last Movie" meia hora depois da primeira tomada.
"Variety" atribui, erroneamente, a Orson Welles a invenção da sequência antes do crédito e do crédito falado. Claro que "Cidadão Kane" e "Soberba" ajudaram a promover aquelas duas excentricidades, mas o fato é que, em 1928, 14 anos antes de "Soberba", o ator Conrad Nagel já anunciava com sua voz o elenco e a equipe técnica de "The Terror", e, sete anos antes de "Cidadão Kane", um filme de Ben Hecht e Charlie MacArthur, "Crime Sem Paixão", introduzira a primeira sequência pré-credito do cinema. Era um espanto. Em homenagem aos seus 60 anos, termino com ela este artigo:
Cano de um revólver em primeiríssimo plano. Disparo. Sangue no chão. Da poça de sangue brotam as três Fúrias da mitologia grega, que, esvoaçantes como fantasmas, percorrem o céu de Manhattan, incitando seus habitantes ao crime. Ao passar por um arranha-céu, uma das Fúrias quebra a vidraça do último andar, cujos estilhaços formam no ar o título do filme: "Crime Without Passion".

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