São Paulo, sexta-feira, 28 de janeiro de 1994
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Itinerário do fim

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – A cara do médico não é boa, mas a cara dos médicos, do outro lado da mesa, é sempre enigmática, faz parte da consulta, da profissão e dos honorários: o jeito é o paciente ficar paciente e aguardar os exames. Mas até os exames há os hieróglifos que ele procura decifrar. Há nomes com raízes gregas e desinências latinas, ele não entende nada, sabe apenas que um pedaço de sua carne será retirado e irá para as provetas, os reagentes, o diabo. Por falar no diabo, passa pela igreja e tem vontade de entrar, acender velas, pedir qualquer coisa. Mas pedir o quê, exatamente? Mesmo assim entra na igreja. Está escura, vazia, somente uma velha, lá na frente, deve estar pedindo também alguma coisa. Pelo jeito, ela deve saber o que está pedindo –o que não é o caso dele.
E vem de volta a cara do médico: "Se tudo correr bem, podemos salvar a vista. Sejamos otimistas, o senhor ficará bom!" Ali na igreja a frase é uma espécie de oração às avessas. O que significa "ficar bom"? Significa ser como antes, e ele nunca fora bom. Olhar as coisas, o mar, as crianças, a noite, a velha lá na frente.
Sim, o senhor ficará bom, mas pode haver raízes gregas e declinações latinas e tudo ficará complicado. Não importa, agora. Está numa igreja onde se adora um Deus em que ele não acredita. Mas precisa acreditar, ao menos no laboratório. Novamente na rua, confere o endereço, entra em números errados, toma elevadores equivocados, desce em andares estranhos. Até que vê a porta de vidro com o nome gravado em azul: "análises clínicas". É ali. A enfermeira começa a preparar as pinças, as placas de vidro. Em breve, uma gota de seu sangue será uma pitanga muito vermelha pousada numa delas. A solução –não a salvação de todos os enigmas. Brevemente, o mundo acabará para seus olhos. E as mulheres, as crianças, o mar, os livros que gostaria de ler –tudo será a mancha tão escura e estranha como a velha que rezava na igreja. Pela janela, vê o ônibus fazendo a curva na praça. Tem um pensamento idiota: será essa a última imagem que ficará em seus olhos? De que adiantou ter visto a fachada de Santa Maria dei Fiori, as mulheres que amou? De que adiantou...? O pagamento é adiantado. Seu nome no cheque o surpreende: não é mais ele.

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