São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 1994
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John Updike erra o ponto em "Brazil"

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Título: Brazil
Autor: John Updike
Lançamento: dia 7
Preço: indefinido

Diga-se o que se disser, "Brazil", de John Updike, que chega às livrarias brasileiras na próxima segunda-feira, é um livro corajoso. Costurar uma aventura de linhas medievais num painel moderno e vulgar é um ato de coragem. São estilos que nunca se enlaçaram, a fábula mítica e o realismo naturalista. Como um Zola contando a história de Tristão e Isolda, Updike fez de "Brazil" um livro que terá dois tipos igualmente ardorosos de inimigos: o cobrador de verossimilhança e o de inverossimilhança.
Michiko Kakutani, que fez na semana passada no "New York Times" uma crítica ácida ao livro, é do primeiro. Não entendeu o projeto de Updike. Só filisteus acham que arte é cópia da vida.
Quem cobrar inverossimilhança de "Brazil" vai estar mais perto da verdade. Updike, declaradamente, quis dar um "tom fabular" à história dos jovens cariocas Tristão, negro e favelado, e Isabel, branca e rica, que são acorrentados um ao outro por seu destino sexual e, por isso, obrigados a enfrentar ambas as famílias. Quando se conhecem na praia, e ela logo dá papo a ele, Isabel diz: "Venha. Chegou a hora". Como a Isolda da lenda, sabe seu destino, sabe que é implacável: não importa o que faça, seu amor por Tristão só será possível na vida eterna. A situação é improvável, mas a frase indica que estamos num plano mítico. O problema é que ele não se sustenta.
A interpretação mais plausível –e há muitas– do que Updike quis mostrar em "Brazil" é que, não importa a cor da pele, o destino biológico prevalece sobre as forças sociais. Seu Romeu e sua Julieta sofrem o racismo brasileiro ao extremo –que Updike sabe existir apesar das ladainhas sobre miscigenação. Mas, no final, quando trocam de cor de pele numa sessão de magia, continuam tendo de cumprir seu destino.
"Brazil" é veloz, repleto de incidentes e sugestivo, como nunca antes Updike fez. Isso porque Tristão e Isabel, levados pela roda viva, percorrem o país em busca de uma tranquilidade que jamais terão –que é o seu Graal.
Rejeitados pelo tio de Isabel, Donaciano, burguês hipócrita, e pela mãe de Tristão, Ursula, prostituta sem papas na língua, saem do Rio e vão para São Paulo tentar a vida. Mas são traídos pelo meio-irmão de Tristão, que em troca de dinheiro os delata para o pai de Isabel, Salomão, diplomata influente que mora em Brasília. Tristão vai atrás dela na capital e fogem para o Mato Grosso, onde ele vira garimpeiro e ela, prostituta. Num acampamento amazônico, conhecem índios escravizados por "bandeirantes" anacrônicos, e um curandeiro lhes inverte as cores, num trecho todo informado pelo "Tristes Trópicos" de Lévi-Strauss. Voltam então ao Mato Grosso, a Brasília, a Soo Paulo, ao apartamento do tio no Rio e à praia onde se conheceram. Updike amarra início e fim e encerra a história num círculo mítico.
O livro tem um pouco de tudo, especialmente influências de escritores brasileiros. Quando Tristão e Isabel voltam ao Rio, ele já branco, têm mais facilidade em ser aceitos e ficam bem de vida –mas começam a levar uma vida tediosa e mesquinha como as dos personagens de Machado de Assis. Há também toques de Rubem Fonseca, no policial semiculto César. "Os Sertões" de Euclides na Cunha são recorrentes nas descrições de Mato Grosso. O rosto vincado de Ursula parece retratado por Graciliano Ramos.
Essa mistura de inspirações diz um pouco sobre o erro de Updike. São tantos ingredientes que ele perdeu o ponto. A mesma distância que existe entre o negro e o branco na realidade brasileira (que Updike quis sim retratar, basta ver generalizações sociológicas como "Em Copabacabana, a mais democrática, lotada e perigosa das praias do Rio de Janeiro") existe entre o projeto fabular e a narrativa Zolaesca em "Brazil". A narrativa possui um excesso de ridicularias ("Me agrada. É feio, mas inocente, como um sapo", diz Isabel a Tristão sobre seu pênis). O projeto falha por não ser suficientemente desprendido da realidade; fazer o leitor se sentir dentro de uma história realista é fácil, para colocá-lo num plano mítico é preciso acostumá-lo. A mistura vira mingau.

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