São Paulo, sábado, 1 de outubro de 1994
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Escritora bengalesa ataca `cegueira' religiosa

JAIR RATTNER
DE LISBOA

Em junho deste ano, a cidade de Dacca, capital de Bangladesh, teve manifestações de mais de 100 mil pessoas, que ameaçavam jogar 1 milhão de serpentes na cidade se a escritora Taslima Nasreen não fosse morta.
Taslima estava foragida, com medo de ser assassinada, e os integralistas muçulmanos queriam que fosse executada.
Os fundamentalistas bengaleses sentiam-se ameaçados por esta ginecologista, de 1,50m, 32 anos e com três casamentos e três divóricos, que escreveu 15 livros.
Assim como Salman Rushdie, ela foi condenada a uma "fatwa" –sentença de morte– por declarações que teria dado ao jornal "Stateman", de Calcutá. Segundo o jornal, Taslima, de origem muçulmana, mas atéia, teria dito que é necessário modificar o livro sagrado do Corão.
As semelhanças com Rushdie não ficam só na sentença. Seu último livro, "Lajja", não pôde ter o título traduzido, porque já havia um outro com o mesmo nome: "A Vergonha", de Rushdie.
Ela esteve em Lisboa para participar do Parlamento Internacional de Escritores, uma iniciativa apoiada pela Capital Européia da Cultura.
Ao tentar sair da Suécia, onde está refugiada, ela foi impedida de viajar no vôo da TAP, porque seu nome estava numa lista negra da empresa –colocava em risco a vida dos outros passageiros. Teve que ficar um dia em Copenhague esperando o próximo avião.
Vestindo um sari –a roupa típica indiana– e sentada na cama do seu quarto de hotel, em Lisboa, Taslima falou à Folha.

Folha - Como você passa seus dias na Suécia? Não pode trabalhar, está sem livros e amigos.
Taslima Nasrin - Muitas vezes me sinto muito sozinha. Então eu telefono para minha família e para meus amigos em Bangladesh. Estou tentando escrever.
No exílio algumas pessoas podem morrer, outras escrevem. Gostaria de voltar ao meu país, mas isso é impossível, porque eu seria morta. Estou esperando por uma mudança na sociedade.
Folha - Seu próximo livro conta como você viveu os 60 dias escondida antes de sair do país. Como foi a experiência?
Taslima - Eu estava morrendo a cada dia, porque ouvia as pessoas dizendo que eu tinha que ser morta. Vivi em dez a 12 lugares.
Mudava de casa durante a noite e lia nos jornais como os fundamentalistas estavam loucos para me matar. Eles estão destruindo meu país.
Muitos escritores considerados progressistas diziam que era um problema meu, que eu tinha provocado os fundamentalistas e deveria morrer. Mas tenho a certeza que depois de me matarem os fundamentalistas vão atrás deles.
Acho que os fundamentalistas não podem ficar sem oposição. O problema é que eu luto com a minha caneta, e eles, com a espada.
Folha - Você não trouxe nada dos bengaleses –livros, jornais. Como você mantém contato com sua cultura?
Taslima - Eu carrego a cultura no meu coração. Estou num país de cultura diferente e aprendi muitas coisas. Minha cabeça não mudou, e minha forma de escrever também não. Sinto que tenho de lutar mais ainda.
Folha - Nos seus livros, você fala da religião e da sociedade que oprimem as mulheres no seu país.
Taslima - A sociedade dominada pelos homens sempre oprimiu as mulheres. Há muitos tabus medievais na sociedade, que dizem que as mulheres não devem sair, falar, ler, rir. Nenhuma religião libertou as mulheres. Todos os sistemas religiosos são contra as mulheres.
Folha - Um de seus poemas compara uma relação sexual a uma barata entrando na vagina de uma mulher. É uma provocação aos religiosos?
Taslima - Naquele poema eu estava falando contra os abusos sexuais. As mulheres em meu país são uma mercadoria sexual. Quando escrevo, eu não penso no que vai acontecer, nem se os fundamentalistas vão me matar. Acho apenas que devo contar a verdade.
Folha - O que acha de ter sido comparada a Salman Rushdie?
Taslima - Eu respeito Rushdie, porque ele mostrou a cegueira da religião e seu lado escuro. Isso é necessário porque os muçulmanos não podem criticar nada na sua religião.
Folha - Como você se define em termos de religião?
Taslima - Eu sou uma atéia. Mas meu pai, minha mãe e irmãos são muçulmanos.
Folha - Para os muçulmanos, é um crime um membro da religião se declarar apóstata?
Taslima - Sim, é um crime. Se um muçulmano ou uma muçulmana rejeita a religião deve ser morto. É uma lei do Islão.
Folha - Então você tem a lei do Corão e a "fatwa" sobre a sua cabeça. Como dá para viver com duas sentenças de morte?
Taslima - É muito difícil e arriscado. Há quatro anos não posso sair à rua, ir aos shoppings ou feiras de livros. Não posso viver uma vida normal no meu país.
Eu sacrifiquei muito, mas muitas mulheres vêm falar comigo porque gostam do que eu escrevo. Elas dizem que os meus livros abriram seus olhos e agora conseguem ver a opressão. Acho que isso vale o risco e posso até sacrificar minha vida.
Folha - Por que você acha que o fundamentalismo cresce tanto atualmente?
Taslima - No meu país é impulsionado pelo governo, e os fundamentalistas são apoiados por países ricos fundamentalistas, que dão dinheiro e armas. Isso surge num meio de pobreza e frustração, em que os jovens não têm emprego e nenhum partido político consegue dar apoio ideológico.
Folha - Como você aguenta a saudade de Bangladesh?
Taslima - Minhas tristezas eu coloco na escrita. Eu escrevo a minha saudade, minha alegria e minha luta. Quando sinto saudade da minha casa, dos meus amigos e do meu país, eu escrevo. Minha vida é a escrita.

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