São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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Pobre imprensa

MARCELO LEITE

Faço minha estréia nesta coluna na véspera de uma eleição mais do que importante para o Brasil. Diria histórica, até, não fosse o desgaste inexorável a que o adjetivo é submetido nas páginas dos jornais.
A economia, usualmente enlouquecida, comporta-se bem dentro da camisa-de-força do real. Mais: pela primeira vez o país vai escolher entre dois candidatos a presidente suposta ou biograficamente "de esquerda". Pela primeira vez, há uma chance de que a questão social, enfim, deixe de ser caso de polícia.
É tudo o que muito jornalista sonhou na vida.
Além disso, uma das poucas discussões interessantes desta campanha tediosa disse respeito à própria imprensa: henricou ou não?
O ombudsman é a pessoa paga para criticar o jornal em que trabalha, inclusive comparando-o com os concorrentes. É natural, assim, que se espere de mim, hoje, um julgamento conclusivo sobre a questão.
Uma questão que, note bem, não acompanhei em minha função atual, assumida na quarta-feira passada. Mas a segui na dupla condição de cidadão interessado e jornalista com alguma experiência, ainda que absorto na geografia, no ambiente, na ciência. Por isso mesmo, por não ter estado envolvido nem com a cobertura das eleições nem como uma apreciação desse trabalho jornalístico, acho que estou em condição vantajosa para emitir um juízo.
Ei-lo, sem mais rodeios: henricou, sim. Uns mais, outros menos, com maior ou menor leviandade. Até a Folha –o único grande jornal a abrigar em suas páginas uma discussão pública desses temas, nunca é demais dizer– andou escorregando, como teve a coragem de mostrar aqui minha antecessora, Junia Nogueira de Sá.
Henricou, sim. O que não quer dizer grande coisa, apresso-me em dizer. Estou convencido de que não foi um complô da imprensa que levou Fernando Henrique Cardoso tão perto de se eleger presidente da República, amanhã. Nem de banqueiros, da Rede Globo, do FMI, do imperialismo, o que for.
A força da candidatura FHC brota de outra fonte. A chamada "mídia" (esta palavra odiosa, assassinato norte-americano de um termo latino, é uma das pragas que as escolas de comunicação nos legaram) foi mais uma coadjuvante na torrente desencadeada pelo Plano Real.
A imprensa fez o que pôde, claro. Deu curso a toda sorte de preconceitos, foi leniente com FHC, desprezou o fenômeno Enéas. Alheou-se das campanhas para deputados e governadores. Nos poucos momentos em que desceu de seu pedestal de pesquisas de opinião sobre pesquisas de opinião e se dispôs a prestar algum serviço, como o à primeira vista primoroso caderno Olho no Voto da Folha, cometeu erros que comprometeram todo o esforço.
Esteve, no entanto, permanentemente sob vigilância. Não tem precedentes recentes, por exemplo, o direito de resposta obtido pelo PT, e desperdiçado num texto pífio, na capa da revista "IstoÉ" do dia 28. E só quem não conhece a Folha acharia que as cartas no Painel do Leitor, a coluna do ombudsman e os telefonemas de assinantes passaram em branco, sem deixar suas marcas na orientação da cobertura diária das eleições.
Paradoxalmente, foi a Folha –talvez o diário mais próximo do FHC pré-PFL, do ângulo ideológico– quem o incomodou mais, a ponto de o candidato criticar de maneira aberta o jornal. Para quem gosta de números, cito o levantamento do Datafolha publicado ontem: comparado com agosto, o noticiário deste jornal que pode ser considerado negativo para o tucano passou de 22,2% do total para 39,8%, em setembro.
Na semana que passou, para citar um só exemplo, o repórter de Política da Folha, Emanuel Neri, foi publicamente cerceado pelo candidato. Fernando Henrique tentou impedi-lo de fazer uma pergunta pertinente, com argumentos de autoridade, sobre o usineiro João Tenório. O usineiro, citado na CPI do caso PC, tinha ido à casa do peessedebista acompanhando o candidato a governador Divaldo Suruagy (PMDB-AL).
Para minha surpresa, nenhum leitor tinha ligado até a noite de sexta-feira reclamando da ausência de Tenório na foto da primeira página da Folha, que eu anotara em minha crítica interna da edição. Nem mesmo os petistas mais vigilantes, que telefonam diariamente, deram sinal de vida (muitos ligaram para reclamar de outras supostas manipulações, a maioria sem fundamento).
A julgar pelo destempero de FHC, especulo que os tucanos teriam reagido com virulência a uma foto de primeira página com Tenório. E não haveria a menor necessidade, na minha opinião, porque o único abalo possível à candidatura tucana teria de vir da economia. E ele não veio, para desespero dos adeptos de Lula.
O plano foi uma manobra eleitoral? Óbvio. Mas não só isso, e aí reside toda a astúcia dessa construção, digamos, maquiaveliana. O real deixou os petistas sem resposta, como reconheceu o próprio Lula, ao dizer que ele "não pede votos". Com efeito, ele traz votos.
Foi nesse engodo provisório dos tucanos –ou prodígio provisório, como quiser– que todos os conservadores deste país embarcaram, entusiasmados. E também o eleitorado, não se esqueça.
O próprio Fernando Henrique sempre disse que o plano depende de outras reformas profundas, mas a verdade é que ninguém quer saber disso agora. O mágico convenceu a platéia do circo, porque não se consegue divisar o truque que derrubou a inflação (não houve congelamento).
O candidato Fernando Henrique pode decerto comemorar a inacreditável inversão das intenções de voto nas pesquisas eleitorais após o real. Mas o sociólogo, suponho, deve preocupar-se secretamente com tudo o que ela revela de inconsistência política e ideológica da sociedade brasileira. A não ser, é claro, que sua evolução política e intelectual o tenha convencido de que a verdade, toda ela, está do seu lado.
Pois foi nesse aspecto que também vi a imprensa, ou pelo menos parte dela, distanciar-se de FHC. A tropa de choque do PSDB bem que tentou envolver jornais e congêneres na maior das mistificações: a de que quem ficasse contra o real estaria contra a pátria.
Vi um filme muito parecido, também num primeiro de julho (de 1990), na famosa Alexanderplatz de Berlim Oriental. Foi a data da unificação monetária, três meses antes da unificação política. Os alemães do leste beijavam as notas azuis de cem marcos, inebriadas com a moeda forte. Nunca senti tanto asco.
Não se chegou a esse ponto, no Brasil. A biografia de FHC tem peso demais, não se pode compará-lo com um farsante. A presença do PFL na coligação tem peso demais (a biografia de ACM...), não se pode ignorar o que ela implica de contradições. As greves dos petroleiros, dos metalúrgicos, dos bancários têm peso demais, não se pode metê-las no saco emprestado ao autoritarismo militar (os famigerados "objetivos políticos").
Por mais que se queira, é impossível sustentar a miragem da pátria unida em torno do dinheiro quando ele falta para milhões.
Arrisco-me a dizer que a imprensa tem algo a ver com a vivência concreta desses limites, um penoso e lento processo de gestação política. E terá muito mais a ver a partir de amanhã, quando tudo indica que FHC sairá coroado das urnas –pois os tucanos tiveram de arquitetar uma fragilíssima unanimidade monetário-eleitoral para galgar o governo no voto, o que até então tinham sido incapazes de fazer.
Ninguém, nenhum brasileiro tem o direito de desejar-lhe má sorte. Por via das dúvidas, faço uma única recomendação à imprensa, e à Folha em particular, no interesse dos leitores e apoiado no mais alemão dos provérbios: confiança é bom, mas controle é melhor.

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