São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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No que vai dar isso

PLÍNIO MARCOS

E o pavão da bunda fria e do bico comprido? E o sapo barbudo? E o botinudo amarelo? O dinossauro dos pampas? O pelado? E o anfíbio?
Mestre Pron foi o único vencedor; a aranha que criou é forte
A sala é toda revestida de grossas cortinas de veludo escuro e é mal iluminada por lampião de querosene, que projeta sombras nas cortinas tornando o ambiente extremamente sombrio. De repente a porta é aberta como brutalidade e entram três homens vestidos com terno e gravata pretos. Dois são baixinhos e nervosos e um é enorme, muito forte e lerdo. Esse tem uma metralhadora. O mago fica muito assustado.
1º Pron - Achamos o charlatão.
2º Pron - Achamos. Achamos.
Grande - O que fazer com ele?
Mago - O que significa isso, essa invasão a essa hora na minha morada?
1º Pron - Adivinha. Não é vidente?
2º Pron - Não é vidente?
1º Pron - Não desconfia o que viemos fazer aqui?
2º Pron - Não desconfia.
2º Pron - Claro que não desconfio. Essa invasão não tem cabimento.
1º Pron - Use um pouco sua inteligência, vigarista.
2º Pron - Só um pouco.
(Pausa)
1º Pron - Viemos buscar o dinheiro que pagamos para você prever o que ia acontecer com nosso mestre nessa eleição pra presidente da República.
2º Pron - Pagamos. E não foi pouco.
Mago - Mas o que aconteceu? Não ficaram felizes com o resultado? Não aconteceu exatamente como eu falei?
1º Pron - Charlatão. Vagabundo. Enganador.
2º Pron - Você nos enganou, seu mago fajuto.
Mago - O que eu disse?
1º Pron - Que nosso mestre, pela colocação dos astros e pela leitura dos cabelos dos candidatos, seria o único vencedor nessa eleição.
Mago - E não foi o que aconteceu?
1º Pron - Maldito. Cínico. Sórdido. Alienado. Burro. Desinformado. Nós perdemos. (Berrando) Perdemos. Perdemos.
Mago - Quem ganhou?
2º Pron - Não sabe? Finge que não sabe. Canalha. Diga a ele, irmão.
1º Pron - O pavão da bunda fria. Esse idiota de bico comprido. Ele praticamente já está eleito.
Mago - E o que tem isso?
2º Pron - Canalha. Maldito. Grande, aperta ele.
(Grande pega o mago pelo pescoço e vai espremendo, até quase sufocá-lo de vez.)
1º Pron - Chega, Grande. Acho que ele já entendeu o que viemos fazer aqui.
(Grande solta o Mago, que tosse, até retomar a respiração normal.)
Mago - Que absurdo. Que absurdo. Não posso crer que estão me tratando assim.
1º Pron - Vai passando o nosso dinheiro, anda. Enganador, filho de uma cadela.
Mago - Mas eu fiz o meu trabalho. Prometi que o mestre Pron seria o grande vencedor dessa eleição.
1º Pron - Mas ele perdeu, seu cretino.
Mago - Me diz uma coisa. O que fede mais, o excremento de um bode montanhês ou o excremento de uma girafa angolana?
1º Pron - Sei lá. Sei lá o que fede mais.
Mago - Pois é. Vocês não entendem nem de merda e querem entender de política. Escutem, Prons. Eu disse que o vosso mestre seria o grande vencedor. O único vencedor dessa eleição. E ele foi. Foi o único vencedor.
1º Pron - Quer outro aperto do Grande?
(Grande avança, Mago encolhe-se.)
Mago - Esperem. Esperem. Eu provo. Provo o que disse. O mestre Pron foi o grande vencedor. Foi isso o que eu disse. Eu não falei que ele seria eleito presidente. Não falei. Falei... que ele seria o único vencedor dessa eleição. E é o que está acontecendo.
1º Pron - Mas... o pavão da bunda fria e do bico comprido praticamente está eleito.
Mago - Está eleito. Mas não ganhou. Perdeu. Perdeu de forma fragorosa. Perdeu sua dignidade, seu auto-respeito, seu amor próprio. Vendeu sua alma ao diabo. Traiu seus antigos amigos, seus ex-colegas, seus princípios. Jogou todo um passado de lutas respeitável no lixo. Ficou claro que ele não passa de mais um intelectual ridículo, um marginal de classe média querendo ganhar status através da cultura. Ele se elege presidente, lá. Mas não ganhou nada. Terá o desprezo da própria mulher, dos novos amigos, não terá opinião própria. Será um estúpido boneco de ventríloquo sentado no joelho de um gorducho senador baiano, ou no joelho de um puxador de cordéis dos programas de televisão. Está liquidado. Perdeu. Vai virar um panaca como aquele que pintava o bigode e os cabelos. Vaidoso, vai escrever um livreto sobre o Plano Real e pressionar os velhotes caducos da Academia Brasileira de Letras, até conseguir a cadeira da próxima múmia que sucumbir. Triste fim vai ter esse pavão da bunda fria e do bicão grande. A história um dia falará da derrota da sua alma. De como é torpe sua traição aos seus princípios.
(Pausa. Todos os Prons estão pasmos. A pausa é longa. O 1º Pron toma fôlego)
1º Pron - E o sapo barbudo?
Mago - Pobre sapo. Vai ficar longos anos chiando de fora. Sem saber o que o futuro lhe reserva.
2º Pron - E o botinudo amarelo?
Mago - Está roído de ódio. Está ficando roxo de raiva por tanta traição que sofreu. Mais raiva tem de não ter forças, poder para se vingar. Liquidado. Vai criar vaca.
1º Pron - E o dinossauro dos pampas?
Mago - Esse vai espernear. Vai gritar que foi a televisão, a mídia, o topetudo, o Plano Real que elegeram o pavão. Depois cansa. Muda para um país vizinho e vai ser fazendeiro.
2º Pron - E o pelado?
Mago - Se der sorte vai ser chefete de gabinete da mulher. Se ela perder... Não vai ser nada.
1º Pron - E o anfíbio?
Mago - Pobrezinho. Pode usar a farda pra ser porteiro de boate. (Pausa)
1º Pron - Terrível. Não sobrou ninguém.
(Pausa)
Mago - (Rindo) Sobrou o mestre Pron.
Grande - (Vacila um pouco. Dá um tempo.) É, mas todo mundo tá rindo do mestre Pron. Tão gozando ele. Ele tá fazendo papel de palhaço! É a alegria do circo.
1º Pron - Isso é verdade. Nosso mestre caiu no ridículo.
Mago - Não tem importância. O Hitler também era ridículo no começo de tudo. Riam dele. Ele era chamado de palhaço da choperia. Era expulso dos bares. Espancado. Preso. E foi numa dessas, que um mago percebeu que aquele... idiota... aquele esquizofrênico era um médium poderoso. Bem trabalhado... ele poderia... ser... o que foi. Até que quis caminhar sozinho.
1º Pron - Nosso mestre é um médium?
2º Pron - Médium?
Mago - Creio que sim. Observem ele na televisão. Ele esbugalha os olhos. Treme, grita o nome dele mesmo como se estivesse para entrar em êxtase. O mestre Pron que vocês veneram... tem muitos pontos em comum com o nazista Hitler. Ele pode, com sua empolgação delirante, aglutinar os descrentes, os desiludidos, os desencantados. (Pausa) Os partidos já não existem mais. Se avacalharam de vez. As pessoas estão percebendo que os candidatos são um bando de vagabundos. Eleitos pelo dinheiro de seitas... e... e... organizações secretas. Um ou outro... mas os poucos decentes são eleitos apenas para serem votos vencidos... para dar um ar de democracia. Dessa vez o Congresso vai ser o pior de todos os tempos.
1º Pron - E o que nosso mestre poderá fazer?
Mago - Esperar. Continuar berrando seu nome com entusiasmo... Eu sou... Eu sou... Talvez seja a única pessoa no país que pode afirmar que é. Que é ele mesmo. Ridículo. Nazistóide. Maluco. Mas ele pode gritar que ele é. O mestre Pron. Pode berrar também que quer ordem. Que exige ordem. Que tem... teve um minuto e pouquinho na TV... Com três minutos ele se elegia. Eu sou... Meu nome é... Ordem. E marcou. Cresceu... Vai se impondo. Está... no inconsciente coletivo do povo. Todo mundo ri dele. Mas sabe seu nome... E tem sua imagem marcada. O mestre Pron ganhou. Foi o único vencedor. O tipo de aranha que criou é forte, marca fundo nas pessoas. Como o Jânio... Como Hitler...
2º Pron - Mas o Jânio...
Mago - Era um bêbado... Não podia ser orientado por magos.
1º Pron - O Hitler...
Mago - A Sociedade de Tule tutelava a besta. Até quando... Ela quis andar sozinha...
2º Pron - Mago... por mago... o Collor também tinha um bando em volta dele.
Mago - Pobre Collor. Os seus videntes só viam pelo retrovisor. Viam as coisas depois que elas tinham acontecido. O que vivia tingindo os cabelos fazia macumba. Despachava bicho de quatro pés pra Exu... Mas sua vaidade era entrar para a Academia Brasileira de Letras. Conseguiu... Deixou o país à deriva. O Collor também... nem... viu os seus amigos afanando tudo que podiam.
1º Pron - Quer dizer que o mestre Pron...
Mago - Sim... Sim... Vocês estão puxando o saco certo. Ele tem tudo... quase tudo... para mais tarde tomar conta do país. Berrando seu nome e pedindo }ordeeem.
2º Pron - (Respeitoso. Quase afetado.) O senhor disse que ele tem quase tudo pra dar certo. O que lhe falta?
Mago - Um mago... ou um grupo de magos... gente que entende de magia...
(Pausa)
Mago - Os militares... Tinham o Golbery...
1º Pron - É... precisamos... O senhor...
Mago - Não... Não eu. Não sou nazista. Nem quero poder.
1º Pron - Temos que arranjar um...
2º Pron - Temos. Essa vai ser nossa tarefa.
Grande - Vai ser difícil.
Mago - Vai. Vai sim. Tem muito vigarista na jogada. Querendo poder.
1º Pron - Obrigado, senhor Mago. Nós vamos indo.
Mago - Esperem...
(Pausa)
2º Pron - Que foi senhor?
Mago - Eu não cobro nada. Porém, e sempre tem um porém... os clientes deixam quanto quiserem. A vida tá custando os olhos da cara.
1º Pron - Sim... Claro...
2º Pron - Entendemos... Claro. Claro.
Grande - Irmãos Prons dêem por mim, eu estou duro. E senhor Mago, desculpe eu ter apertado seu gogó.
(Prons fazem os cheques, colocam respeitosamente na mesa. Despedem-se e saem.)
Mago - (Sozinho) O pior... é que tudo o que falei é verdade. (Pausa) Deixe ver o que as velhas escrituras dizem do Brasil.
(Abre um livrão grosso, grande e velho)
Mago - (Vai procurando) Tá aqui!... Tá aqui. Brasil.
(Acha e lê, como se falasse para platéia)
Mago - Quando o Senhor nosso Deus estava fazendo o mundo, demorou-se no Brasil. Fez o Rio de Janeiro, fez as praias do Norte e Nordeste, fez serras maravilhosas. Fez o litoral de São Paulo... Fez essa jóia de rara beleza que é Santos... Fez o Guarujá... Fez toda a Baixada Santista... Um grande anjo admirou-se com tantas maravilhas que Deus criava para o Brasil... e respeitoso perguntou: "Senhor meu Deus. O senhor não acha que está exagerando um pouco nas belezas naturais do Brasil?" Deus riu e, debochado, falou: "Espera um pouco, anjo. Você vai ver o povinho que eu vou por lá. Espera para ver os políticos. Vai ser uma bagunça de entortar patuá".
(Mago chora. Pano rápido)

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