São Paulo, quinta-feira, 6 de outubro de 1994
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Uma utopia realista para o Brasil de hoje

PHILIPPE VAN PARIJS

Erramos: 07/10/94

Este artigo saiu com a primeira frase do penúltimo parágrafo truncada. A versão correta é: "É claro que o nível de renda mínima garantida (ligeiramente acima do salário mínimo vigente, de R$ 70,00, na variante de maior valor da proposta) é triste, mas sabiamente baixo".
Em ``Utopia", de Thomas More (1516), o viajante português Rafael fez inúmeras recomendações não-convencionais. Uma delas revelou-se de importância histórica. Para reduzir o roubo, disse ele, não se deve puni-lo com a pena de morte: isso é incentivar crimes mais sérios. Há uma estratégia mais inteligente: introduza-se uma renda mínima garantida e as pessoas não mais necessitarão roubar.
Juan Luis Vives, professor de origem espanhola em Louvain e Oxford, amigo de More, levou adiante a recomendação e elaborou a primeira proposta detalhada de provisão pública de uma renda mínima em ``De Subventione Pauperum" (1526), em parte por ele implementada na cidade flamenga de Bruges.
Muitas outras propostas seguiram-se, tanto no pensamento quanto na realidade, culminando no primeiro esquema de renda mínima abrangente, de escala nacional e durável, que fez parte do plano de seguridade social de Lord Beveridge para a Grã-Bretanha (1946). Planos similares foram introduzidos em outros países europeus, assim como no Canadá, EUA, Austrália e Nova Zelândia.
Desde que, em 1988, a Assembléia Nacional Francesa aprovou a ``Revenue Minimum d'Insertion", pode-se dizer que na maior parte da Comunidade Européia cada família incapaz de obter uma renda suficiente tem direito a uma transferência em dinheiro que eleva sua renda até o nível que se considera necessário para as necessidades básicas.
A garantia de uma rede de segurança é uma preciosa realização da qual esses países podem legitimamente orgulhar-se. A despeito disso, os esquemas de renda mínima geram hoje muita inquietação e descontentamento. Por quê?
Primeiramente, porque qualquer renda ganha leva a uma correspondente redução do benefício recebido. Por isso uma proporção rapidamente crescente da população se vê confinada na rede de segurança: são as pessoas que, incapazes de encontrar um emprego que pague pelo menos tanto quanto a renda mínima garantida, são e sentem-se cada vez mais excluídas do resto da sociedade.
Em segundo lugar, o nível do benefício depende se a pessoa vive sozinha ou se mora com outros –caso em que o benefício é reduzido. Há um incentivo à separação das famílias e a administração do bem-estar social precisa constantemente invadir a privacidade das pessoas para verificar sua situação pessoal.
Finalmente, espera-se que os beneficiários procurem trabalho. Mas é preciso que os empregos ofereçam um salário líquido mais elevado do que a renda garantida, e não existem empregos assim em número suficiente (o desemprego na Europa oscila de 10% a 15%).
Isso gera um clima pouco saudável, em que se espera que as pessoas procurem por algo que elas não encontrarão. Elas se ressentem disso. E aqueles que trabalham e pagam os benefícios também se ressentem, porque sabem que muitos dos beneficiários não estão realmente fazendo o que se espera que façam: procurar trabalho incessantemente.
Essas são algumas razões para abandonar os esquemas de renda mínima. Mas isso seria um retrocesso terrível. Há uma outra solução defendida por um número crescente de intelectuais e organizações européias reunidos desde 1986 na Rede Européia da Renda Básica (Basic Income European Network).
O que defendem é uma reforma radical dos ``Welfare States" europeus, de modo que estes tivessem por base uma renda modesta, mas totalmente incondicional, paga a todos os adultos, solteiros e casados, pobres e ricos, empregados, involuntariamente desempregados e voluntariamente desempregados.
A idéia de uma renda básica (ou ``allocation universelle" ou ``reddito di cittadinanza") paga como um direito a todo cidadão vem de Thomas Paine, o ideólogo da Revolução Americana e pai da noção de direitos humanos. Em um ensaio de 1796, defendeu uma renda dessa natureza como expressão de nosso igual direito aos recursos da Terra.
A primeira proposta detalhada de um esquema de renda básica foi apresentada em livro de 1920 por Dennis Milner, membro do Partido Trabalhista da Grã-Bretanha. O livro foi rapidamente esquecido, mas a idéia sobreviveu, sob a denominação ``dividendo social", na intelligentsia de esquerda inglesa (G.D. Cole, James Meade, Oskar Lange etc.).
Mais tarde, inspirou a noção de imposto de renda negativo de Milton Friedman (1962), usada em fins dos anos 60 por economistas progressistas americanos como James Tobin e John K. Galbraith para pressionar pela introdução de uma renda mínima genuína.
Uma versão modesta da mesma formou a essência da proposta do Plano de Assistência Familiar, do presidente Richard Nixon (1969), por duas vezes aprovado na Câmara dos Deputados dos EUA, mas rejeitado pelo Senado. Uma versão mais abrangente foi apresentada pelo candidato George McGovern, sob o rótulo ``demogrand".
Uma versão significativamente mais branda (restrita a pessoas efetivamente empregadas) foi introduzida em 1975 sob o nome de ``Earned Income Tax Credit"(crédito fiscal por renda recebida) e recentemente ampliada pelo presidente Clinton (1993), atingindo hoje cerca de 20 milhões de famílias.
Enquanto isso, um debate sobre a versão mais ampla da idéia –uma renda de cidadania paga direta e incondicionalmente a todos os adultos– tem se desenvolvido desde os anos 80 na Europa Ocidental, onde altas taxas de desemprego têm incentivado o debate.
Muitos, incluindo eu mesmo, supunham que esse tipo de discussão só poderia surgir em sociedades altamente industrializadas. Foi com a maior surpresa que descobri, durante recente visita ao Brasil, que uma proposta de renda mínima garantida feita pelo senador Eduardo Suplicy, em 1991, foi aprovada quase que por unanimidade pelo Senado brasileiro em dezembro de 1991 e deverá agora ser debatida pela Câmara Federal.
O que é ainda mais surpreendente é que a proposta brasileira, sendo uma forma de imposto de renda negativo, é muito mais próxima de uma renda básica do que os esquemas europeus de renda mínima. Consiste, primeiramente, de um direito individual a uma renda em dinheiro, sem restrições aos involuntariamente desempregados, mas preservando incentivos ao trabalho na extremidade inferior da escala.
Não há dúvida de que a razão para querer saltar o estágio dos esquemas condicionais de tipo europeu (e para ser politicamente capaz de fazê-lo) em parte se deve ao fato de que uma economia com um grande setor informal tem ainda menos capacidade de suportar os efeitos perversos desses esquemas.
É claro que o nível de renda mínima garantida (ligeiramente acima do salário mínimo vigente, de R$ 70,00, na variante de maior valor da proposta) é triste, mas sabiamente baixo. Além disso, os detalhes administrativos do esquema terão de ser cuidadosamente trabalhados, de forma a assegurar as máximas transparência, equidade e eficácia necessárias para atingir a população-alvo.
À luz tanto dos aspectos positivos quanto dos negativos da experiência européia, não há dúvida de que implementar o Programa de Renda Mínima Garantida é um passo urgente e indispensável na direção de maior justiça social no Brasil.

Tradução de Álvaro de Vita.

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