São Paulo, sexta-feira, 7 de outubro de 1994
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Quando os mestres se encontram

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Mestre Villa-Lobos, Heitor como eu e como eu carioca sem remissão, estava em seu apartamento na Esplanada do Castelo e fui levar-lhe Leonide Massine, outro mestre por sinal. O coreógrafo de ``O Chapéu de Três Bicos" e ``Parade" desejava uma partitura brasileira com trânsito internacional para montar um balé no Municipal.
Feitas as apresentações, esgotados os elogios de parte a parte, mestre Villa garantiu que tinha exatamente o que Massine procurava. Ele sabia que o ``maitre" tinha opção, uma peça então inédita de Erik Satie, precisava caprichar. Foi ao piano e tocou.
Massine ouviu calado, cabeça baixa. ``Gostou?", perguntou Villa. Massine disse que não. Mestre Villa não se perturbou. Tocou fugas, baladas, trechos de uma sinfonia, o segundo movimento de uma sonata, um batuque, uma fantasia, Massine abanava a cabeça.
Mestre Villa improvisou –era um de seus fortes. Massine também improvisou, mas uma retirada. Mestre Villa perdeu a calma: ``Afinal, o que o mestre deseja?" (O ``mestre" saiu da boca de Villa como um insulto).
Foi então que Massine se explicou. Certa vez, em Paris, ouvira Villa-Lobos tocar uma pequena peça muito bonita, mas não sabia o nome da obra, só guardara a frase musical predominante. ``Então cante que eu me lembrarei!"
Massine alegou que era desafinado, Vila o encorajou: ``Eu não reparo!". Massine tomou coragem, limpou a garganta com um pigarro e cantarolou: ``Lalala lala lalalala..." Mestre Vila deu um salto e fechou o piano com violência.
Estupefacto, Massine olhou para mim e eu olhei para a porta. Villa reconheceu que não estava num bom dia, mas prometeu que ia pensar, mais tarde falaria com Murilo Miranda, então diretor do Municipal, que havia contratado o coreógrafo para montar espetáculos.
Na rua, Massine quis saber o que havia acontecido. Ele apenas solfejara para o mestre o ``nesta rua, nesta rua tem um bosque". E viva a América do Sul, a América do Sol, a América do Sal e o América Futebol Clube, campeão de 1922.

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