São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994 |
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Dicionário esconde desejo de dominar o mundo
ANTONIO CALLADO
Foi por esse tempo que Churchill, num daqueles discursos que a BBC traduzia e transmitia para o mundo inteiro nas 159 línguas que falava, citou Bismarck, o chanceler da unificação alemã, que afirmara que o grande dado político do mundo do fim do século 19 era que a Inglaterra e os Estados Unidos falavam a mesma língua. (Conto aqui, ao pé do ouvido do leitor, que foi grande o esforço posterior para localizar nos discursos e pronunciamentos de Otto von Bismarck a prenhe frase em que ele via o mundo nas garras da língua inglesa. A frase não foi, que eu saiba, descoberta até hoje. Era certamente do próprio Churchill.) A moral da história é que a língua que se transformar na língua aceita de todos os homens, será a dos dominadores da Terra. Tudo parece indicar, no momento, que o inglês, que tanto teria preocupado Bismarck, já ganhou a parada. Mas não esqueçamos, por exemplo, que na China há 1 bilhão e 100 milhões de seres humanos falando chinês e que a China vive um enérgico renascimento. Além do mais, o Deus severo do Antigo Testamento não gostava nada dessa idéia de uma língua única. O gênesis, capítulo 11, conta que o homem tinha ficado tão arrogante, tão metido a Deus, que se pusera a construir uma torre para tocar no próprio céu. Deus, sutil, não resolveu, digamos, derrubar com um raio o que já tinha sido construído da torre de Babel. Encerrou, isto sim, o período totalitário da língua humana, que até então era uma só, e com esse truque de gênio criou uma confusão babélica. Ninguém, entre os obreiros da torre, sabia mais o que fosse tijolo ou pedra, martelo ou pá. Estavam diversificados os idiomas. Nasceu de chofre nos homens a convicção de que estariam perdidos se não soubessem memorizar e entesourar as palavras da tribo, as únicas verdadeiras, as únicas que refletem com perfeição a realidade. Os dicionários entraram em cena. Como se vê, da voz de Churchill como da de Jeová, salta a verdade de que, se chegarem de novo ao idioma único, pré-babélico, os homens terminarão sua torre e invadirão o céu. Enquanto não chegam lá, mas sempre na esperança de lá chegarem, pedem auxílio aos Oxford English Dictionary, aos Robert, aos Aurélio. Em todo bom dicionário esconde-se o secreto desejo de conquistar o mundo. Se conseguirmos amealhar na ordem alfabética, submetidos a uma poderosa lente histórica e etimológica, os ordeiros sons em que soubemos catalogar o caótico mundo em torno, teremos uma boa chance de afinal dar razão a Camões quando disse, da tribo de homens que falava o idioma português, que ``se mais mundo houvera lá chegara". Texto Anterior: Folha traz amanhã melhor dicionário do país Próximo Texto: Décimo fascículo do atlas traz Paris, no Texas Índice |
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