São Paulo, sábado, 15 de outubro de 1994
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Instalações

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não me darei ao respeito de ir a São Paulo me autogratificar com a Bienal. Sei que ela está cheia de instalações, os quadros entraram em decadência, são criações artificiais, múmias decorativas, obras sem interação.
Instalação é outra coisa: é a própria vida que afinal penetra nos museus petrificados pelo convencional, fossilizados pela banalidade. Tudo bem. Acontece que eu próprio fiz uma instalação e andei pensando em me habilitar à Bienal.
E foi uma instalação veraz, que brotou no mágico instante de uma súbita necessidade –e não da inspiração acadêmica que hoje não se usa mais.
Deu-se que queimou uma lâmpada na área de serviço onde tenho dois secadores de roupa, a máquina de lavar, um tanque, um freezer e o refeitório de minhas duas setters. Por acaso, naquele dia, o motorista que me serve havia trazido um pedaço do pára-choque dianteiro do carro –e o encostara numa das paredes, para posterior avaliação.
Subi na escada com as cautelas próprias à minha incompetência para qualquer serviço doméstico. Tentei torcer a lâmpada queimada, mas ela se recusava a sair. Dei um puxão, uma luz azulada passou pelos meus dedos e logo senti um estremecimento no corpo. Segurei-me num dos secadores de roupa onde um lençol molhado me recebeu e me amorteceu a queda.
Veio tudo abaixo, a começar por mim, o lençol, o secador que caiu em cima do pára-choque, o qual abriu a porta do freezer, do qual saíram um peru congelado (desses que têm um termômetro no peito), cinco trutas que ganhei de um cunhado e alguns sacos de leite.
Olhando tudo da perspectiva do chão, vi que aquela mixórdia era na realidade uma instalação que captava um instante da vida. Eu conseguira penetrar interativamente no núcleo da própria existência.
Pensei em mandar aquilo tudo para a Bienal, mas eu teria de ir junto, de sunga, caído de quatro, com a mão num dos pratos de Mila –o cardápio do dia eram pescoços de galinha, caldo de carne e ração vitaminada. Desanimei, por ora. A obra de arte fica para mais tarde, enquanto eu fico aguardando um patrocínio.

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