São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 1994
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Salários de senadores e legitimidade do Estado

ROBERTO ROMANO

``O Simón mago, o miseri seguaci che le cose di Dio, che di bontate deon essere spose, e voi rapaci per oro e per argento adulterate". (Dante, Inferno)
Certas instituições encontram sua autoridade na palavra divina. Acreditemos ou não nos dogmas, é preciso reconhecer que seus dirigentes são obedecidos porque um Deus fala através de sua boca. Suas qualidades pessoais importam pouco. Quando prevaricam, eles são punidos no inferno, como aconteceu, na opinião de muita gente boa, com o papa Bonifácio 8º, simoníaco reconhecido. Mas o carisma é da própria Igreja, não de seus ministros. A prova de que ela é divina, dizia um erudito, é que os homens ainda não a destruíram.
Outras associações humanas, como a universidade, retiram do saber o respeito pelos seus atos e palavras. Sem a ciência rigorosa e objetiva, ela pode atingir situações privilegiadas de mando, como ocorreu com a Sorbonne. Neste caso ela é mais temida do que estimada pelos cientistas, filósofos, pesquisadores. Jacques Le Goff mostra o quanto a universidade se degradou quando tornou-se uma polícia do intelecto a serviço do Estado e da Igreja.
As instituições políticas não possuem nem Deus nem a ciência como fonte de autoridade. Sua justificativa é impedir que os homens se destruam mutuamente e vivam em segurança anímica e corporal. Se um Estado não garante estes itens, ele não pode aspirar à legítima obediência civil ou armada. Sem a confiança pública, desmorona a soberania justa. Só resta a força bruta ou a propaganda mentirosa para amparar uma potência política falida.
O Estado deve ser visto com respeito pelos cidadãos. Há uma espécie de aura a ser mantida, através do essencial decoro. Em todas as suas falas e atos, os poderosos precisam apresentar-se ao povo como pessoas confiáveis e sérias. No Executivo, no Parlamento e, sobretudo, no Judiciário, esta é a raiz do poder legítimo.
Com a fé pública, os dirigentes podem governar em sentido estrito, administrando as atividades sociais, econômicas, religiosas etc. Sem ela, os governantes são reféns das oligarquias instaladas no próprio âmbito do Estado. Estas últimas, sugando para si o excedente econômico, enfraquecem o Estado, tornando-o uma instituição inane.
No Brasil, por exemplo, quase a metade dos impostos não chega aos cofres públicos. Sem o monopólio eficaz da arrecadação e da aplicação do excedente econômico –que garantiria a segurança física e espiritual do povo, por meio das escolas, hospitais, polícia, exército etc.– o Estado brasileiro não é plenamente soberano.
Esse descalabro piorou nos últimos tempos. Empresários, comerciantes, trabalhadores, a população em geral, todos caminham para dispensar o Estado nas suas atividades cotidianas. Se é saudável, como afirmação de maioridade, esta atitude abre o caminho para a despolitização e para a anomia. Se não há governo para controlar os setores organizados na produção de riquezas lícitas, também não existe controle dos grupos reunidos para a circulação da riqueza ilícita.
A situação do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outros grandes centros urbanos é exemplar: sem recursos e sem apoio da opinião pública, o Estado cede aos setores particulares (sobretudo os ilícitos) até mesmo o monopólio da força física.
Por esses motivos, preocupa o número de votos nulos e brancos das últimas eleições. É preciso valorizar o Parlamento, o Executivo, o Judiciário, como base, entre nós, de uma vida civilizada e segura.
A imprensa tem feito seu papel, apesar das ameaças dos que deveriam acolher as denúncias e modificar o ``modus operandi" que desmoraliza o poder público a partir de seu interior.
A universidade está quase falida. Reitores paulistas ameaçam calote até nas contas de eletricidade. Muitos docentes sonham com as ``assessorias", ajudando a reduzir os campi ao papel de instrumentos governamentais.
Após as CPIs do governo Collor e do Orçamento e depois da explícita recusa do fisiologismo, pelo eleitorado, esperamos responsabilidade dos novos dirigentes, sobretudo no Congresso Nacional.
Neste sentido, a proposta do senador Júlio Campos, triplicando o salário dos parlamentares, é uma bofetada no rosto da cidadania. As urnas sem votos, ou com sufrágios em branco, agradecem. Os bandidos e os fascistas, idem. Que os senadores pensem três vezes antes de aprovar esta medida odiosa que enfraquece ainda mais o Estado brasileiro.

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