São Paulo, quinta-feira, 20 de outubro de 1994
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Começar de novo

FREI BETTO

A derrota de Lula e o resultado das eleições suscitam, aos setores vinculados às bases populares, reflexões que merecem ser partilhadas. Como todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto –e aquele no qual se situa o autor é o da organização popular–, não se pode, sem risco de pretensão, abarcar todos os fatores que configuram a atual conjuntura.
Desta vez, o impacto emocional frente à derrota é menor do que em 1989. O acúmulo do capital político de Lula, preferido por 27% do eleitorado, ainda no 1º turno, deita por terra as ilusões de quem pensa que ele é uma carta fora do baralho. Mas por que Lula não chegou lá? Entre os fatores já analisados por outros articulistas, resta assinalar a relação do PT com as bases populares.
Nas décadas de 70 e 80, elas receberam grande incentivo da Igreja católica, especialmente através das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Hoje, a Igreja encontra-se em impasse pastoral. Pressões vaticanas refluem os bispos no apoio às pastorais populares. Bispos outrora progressistas agora sentem-se mais cômodos junto aos movimentos espiritualistas.
Assim, o movimento popular e o PT já não contam com a militância das CEBs, embora essas tenham exercido preponderante papel na eleição da senadora Marina Silva, no Acre. Porém candidatos tradicionalmente respaldados pelas CEBs perderam eleições.
Venceram candidatos apoiados por movimentos consistentes, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, que ajudou a eleger dez deputados comprometidos com a reforma agrária. Também tiveram êxito os candidatos com espaço na mídia. A esquerda ainda não sabe lidar com a mídia, como se ela fosse mero instrumento da opressão burguesa.
De fato, a mídia não comporta os jargões do dialeto político e, ao socializar idéias e propostas, impele ao debate democrático, o que nem sempre favorece aqueles que não conseguem entender que a utopia socialista deve, agora, passar por ética, cidadania e democracia.
Nos anos 80, o PT passou a administrar importantes municípios. Lideranças populares trocaram a favela pelo gabinete, as pichações pelas inaugurações, o ônibus pelo carro oficial, a reivindicação pela racionalização. Uma coisa é ser pedra; outra, vidraça.
Algumas lideranças ficaram de salto alto, abandonaram o trabalho de base e de organização dos núcleos partidários, mantendo relações de clientelismo com a população. Em muitas prefeituras, os conselhos populares permaneceram no papel. Não se levou a efeito a proposta original do PT de organizar a classe trabalhadora.
O PT é fruto do encontro dos movimentos populares e sindicais e a esquerda organizada. Priorizava-se, nos anos 70, o trabalho de base. Tanto que os setores basistas recearam criar um partido. Aceitaram, desde que o partido se propusesse a levar os oprimidos ao confronto com os opressores.
Com o andar da carroça, as abóboras se ajeitaram: bastava defender o socialismo.
Porém, o socialismo faliu no Leste Europeu, a política exige alianças e nada indica que a via institucional ruma na direção do socialismo.
Assim, o PT passou a expressar o pragmatismo político de lideranças como Lula e Olívio Dutra, que querem, através de uma política de massas, reformas estruturais capazes de garantir um Brasil melhor para todos, e aqueles que insistem em preservar a pureza doutrinária de um partido que só manterá limpas suas mãos se recusar-se a estendê-las a outros parceiros.
Por que tantos eleitores de Lula bandearam para FHC? Vale destacar as mudanças epistemológicas que a TV opera no imaginário popular. O discurso narrativo, próprio de uma esquerda literária, cede lugar à circularidade televisiva que fragmenta a percepção histórica na simultaneidade das imagens que mais falam à emoção que à razão, aos sentidos que à consciência.
Reduz-se o limite entre sonho e realidade, induzindo as pessoas a trocarem a utopia pela segurança imediata e a mudança do mundo pela qualidade de vida. Nenhum discurso político terá ressonância se, agora, não passar por segurança e qualidade de vida, defesa do meio ambiente, ética e subjetividade, mística e espiritualidade.
Concorreu ainda para a derrota de Lula o preconceito contra alguém que não se enquadra no figurino desta nação de reinóis, onde as escolas de samba recriam a nobreza.
O eleitor acredita em messias e supõe que um presidente é senhor de todas as decisões. E o messias deve ser o diferente, aquele que, por seus símbolos, se situa acima do comum dos mortais desta nação que carece de auto-estima e sonha fantasiar-se de Primeiro Mundo.
Todos esses fatores exigem que se repense a metodologia do trabalho popular e a linguagem política. A situação do povo brasileiro piorou nos últimos anos. Quando se tem a barriga cheia é viável trazer na cabeça o sonho de um mundo novo. Mas quando se tem a barriga vazia, um prato de comida interessa mais que todas as utopias.
O desafio é como fazer da política uma resposta imediata às demandas econômicas e mediata ao resgate da esperança, que faz da existência um sacramento de solidariedade.

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